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IMPOSTO SELETIVO: UM MUSEU DE NOVIDADES

14 de junho de 2024

Nos parece ser mais prudente prever outra forma de atualização das alíquotas específicas, evitando impacto artificial nos preços. 

Em 1988, Cazuza, ávido pela vida e aflito pelo avançar das mazelas da AIDS, à época ainda sem tratamento, juntou-se a Arnaldo Brandão e escreveu a icônica canção “O tempo não pára”, nome que também serviu de título para o álbum lançado naquele ano.

Dentre seus marcantes versos, há um trecho bem conhecido pelos tributaristas, lembrado diversas vezes por Paulo Ayres Barreto durante as discussões que precederam a aprovação da EC 132 e agora repetido por mim: “Eu vejo o futuro repetir o passado, Eu vejo um museu de grandes novidades…”

É assim que nasce o novo imposto seletivo brasileiro (art. 153, VIII, da CF/88), com cheiro de naftalina e aparência de um IPI recauchutado.

Embora a redação original da PEC 45 previsse expressamente sua finalidade extrafiscal, o texto final da EC 132 retirou a menção a extrafiscalidade e previu sua incidência sobre produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, mantendo sua vinculação às atividades que geram externalidades negativas.

A dificuldade é estabelecer os critérios para definir o que é prejudicial e o que se pretende combater ou desestimular. Ora, se até o processo produtivo de engarrafamento de água mineral pode ser danoso ao meio ambiente, assim como o consumo excessivo de água pode causar hiponatremia, tem-se na prática uma amplitude magnânima, sendo mais fácil e finito limitar as hipóteses sobre as quais não poderá incidir.

Daí surge o primeiro estranhamento quanto à contemporaneidade deste tributo: não há previsão para que o IS incida sobre bens imateriais, inclusive direitos, à exemplo do que ocorre para o IBS e CBS. Assim, o IS parece manter como referência a economia industrial pré revolução tecnológica.

Por sua vez, ao prever a incidência do IS sobre veículos, embarcações e aeronaves, o PLP 68/2024 ignora que não são propriamente os meios que poluem, mas sim o tipo e quantidade de combustível utilizado. Dois consumidores podem ter o mesmo modelo de veículo, mas um deles só utiliza seu carro aos domingos, enquanto o outro é motorista de aplicativo. Assim como o mesmo carro flex pode poluir mais ou menos a depender do tipo de combustível de preferência do seu proprietário, que em sua maioria faz escolhas em razão do preço e não do impacto ambiental.

O projeto também deixou de prever a não incidência do IS quando referidos bens forem utilizados na consecução de atividade econômica do contribuinte, a exemplo das exceções aplicáveis ao IPVA para serviços de transporte e outros. Assim, até mesmo as embarcações destinadas à pesca de subsistência estarão sujeitas ao imposto.

O frágil elo de nexo causal entre a tributação do meio (e não do combustível) com a externalidade que se pretende atingir (no caso, a poluição), reforça os rumores de que o “novo” IS em realidade busca atingir a mesma base do antigo IPI, como simples meio de substituir referida arrecadação.

E para encerrar, ainda há o art. 421 do PLP 68 que prevê que as alíquotas específicas (ad rem) do Imposto Seletivo serão atualizadas monetariamente uma vez ao ano pelo IPCA. Este índice, calculado pelo IBGE, considera aproximadamente 430 mil preços em 30 mil locais mensalmente, comparando-os com os do mês anterior, resultando num único valor que reflete a variação geral de preços ao consumidor no período.

A indexação é uma prática antiga, amplamente utilizada nas décadas de ditadura militar, contribuindo para o cenário inflacionário que assolou o Brasil na década de 80. Assim, embora nos pareça que o objetivo do PLP 68 seja manter as alíquotas específicas atualizadas, esta medida pode em realidade influenciar a formação artificial de preços e contribuir para a inflação.

É possível que o preço de um item sujeito à alíquota específica do Imposto Seletivo não aumente de um ano para o outro, aumente em percentual inferior ou, ainda, superior ao IPCA. Contudo, a indexação ao IPCA não respeita essas hipóteses, pois obriga a atualização da alíquota com base numa média de inflação aplicável a uma gama de produtos e serviços que não necessariamente reflete a realidade da demanda e formação do preço daquele item sujeito ao IS.

Caso este item seja uma bebida que compõe a cesta de produtos utilizada para o cálculo do IPCA, por exemplo, o aumento automático do seu valor em razão da correção da alíquota específica pelo IPCA irá impactar a própria medição do IPCA e novos aumentos de preços serão registrados mensalmente, podendo causar o fenômeno cíclico de espiral inflacionária – um dos motivos que contribuíram para a hiperinflação no Brasil durante os anos 1980.

Embora o Imposto Seletivo não se sujeite ao princípio da neutralidade aplicado ao IBS e CBS (art. 156-A, §1º, CF/88) há outros comandos constitucionais que regem a ordem econômica nacional que devem ser observados, especialmente a livre concorrência e a defesa do consumidor (art. 170, IV e V, CF/88).

O possível aumento artificial de preços e seu impacto na inflação pode prejudicar ainda mais os consumidores de baixa renda, contrariando os princípios da justiça tributária (art. 145, §3º, CF/88) e da redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, VII, CF/88), além do comando constitucional de que a legislação tributária deve buscar atenuar efeitos regressivos (art. 145, §4º, CF/88).

Nos parece ser mais prudente prever outra forma de atualização das alíquotas específicas, evitando impacto artificial nos preços, possíveis consequências nocivas à inflação e ressalvando perdas arrecadatórias na hipótese do aumento real do preço ser maior que o índice indexado. Que as ideias correspondam aos fatos, pois o tempo não pára.

Lina Santin, pesquisadora do NEF/FGV e sócia de Salusse Marangoni Parente e Jabur Advogados.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LINA SANTIN

 

 

 

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