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CARF E TRIBUTAÇÃO DE SERVIÇOS PERSONALÍSSIMOS

8 de dezembro de 2020

Não se pode admitir que a administração tributária crie requisitos despidos de base legal para evitar ou dificultar a aplicação de normas válidas.

No já distante ano de 2005, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 11.196, oriunda da conversão da chamada “MP do Bem”, cujo artigo 129 autorizou, para fins fiscais e previdenciários, a sujeição dos “serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural”, prestados “em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, […] à legislação aplicável às pessoas jurídicas”.

Antes de sua introdução no ordenamento jurídico, a Receita Federal do Brasil negava que pessoas jurídicas prestassem tais serviços em razão de sua natureza personalíssima, atividade considerada “própria” de pessoas físicas. Exigia que os rendimentos, posto que auferidos pela pessoa jurídica, fossem submetidos ao IRPF, a “verdadeira” prestadora dos referidos serviços.

Não se pode admitir que a administração tributária crie requisitos despidos de base legal para evitar ou dificultar a aplicação de normas válidas.

Negava-se, assim, que pessoa física e pessoa jurídica são criações do Direito. Afinal, existem, isso sim, indivíduos que, por vezes, apresentam-se como pessoas físicas ou, alternativamente, atribuem determinado patrimônio a uma pessoa jurídica, esta última expressamente admitida pelo referido art. 129.

Da leitura do texto legal, identificam-se os pressupostos para a aplicação da norma: (i) os serviços devem ser intelectuais; (ii) podem prestados em caráter personalíssimo, ou não; (iii) admitindo-se a designação de obrigações aos sócios ou empregados da empresa prestadora, quando lhe couber a prestação dos serviços; e (iv) desde que essa atuação não configure a hipótese de abuso da personalidade jurídica, nos termos do artigo 50 do Código Civil de 2002.

Apesar da clara e expressa decisão do legislador ao editar o dispositivo, há casos em que tanto a RFB quanto o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais criam requisitos não previstos em lei ou simplesmente não aceitam que o serviço seja prestado em caráter personalíssimo por meio de uma sociedade regularmente constituída, submetendo os rendimentos, por conseguinte, ao IRPF.

No primeiro caso, o Fisco normalmente reclassifica os rendimentos recebidos pela pessoa jurídica, por exemplo, pelo fato de os serviços serem prestados na dependência do contratante (cf. Acórdão nº. 2201-004.590) ou em razão de a sociedade prestadora atender apenas uma pessoa jurídica (cf. Acórdão nº 2201-002.700).

Há, é claro, outras situações apontadas por decisões do Carf que, em tese, legitimariam o afastamento da regra em questão. O que importa, aqui, é destacar que esses elementos, quando muito, poderão ser adotados como indícios de simulação ou dissimulação, mas não podem, sozinhos, levar ao afastamento do regime prescrito pelo artigo 129 da Lei nº 11.196/05.

Aqui, vale a ressalva, não se criticam as autuações que desvelam a prática de atos simulados ou dissimulados (e que importem abuso da personalidade jurídica – conforme o artigo 50 do Código Civil). Pelo contrário: o Fisco pode – e deve – reclassificar os rendimentos declarados pela pessoa jurídica em tais situação (imputando-os à pessoa física). Basta cogitar, por exemplo, a hipótese em que o prestador constitui uma pessoa jurídica para dissimular uma relação de emprego, situação também já enfrentada pelo Carf.

Já no segundo caso, também a título exemplificativo, o Carf considerou que a remuneração percebida pelo árbitro, ainda que desenvolva a sua atividade por intermédio de sociedade profissional, deveria ser tributada na pessoa física por se tratar de atividade restrita às pessoas físicas (acórdão nº 2402-008.171).

O atual panorama das decisões proferidas pelo Carf sobre o tema revela, na maioria dos casos, desprezo pelo texto do artigo 129 da Lei nº 11.196/05, afastando-se tal órgão do seu principal objetivo, qual seja controlar a legalidade dos lançamentos tributários editados pelas autoridades fiscais.

Apesar disso, há a expectativa de que esses desvios sejam corrigidos pelo Poder Judiciário – como se deu no famoso processo (0022319-12.2008.4.02.5101), em que o TRF da 2ª Região aplicou o artigo 129, reconhecendo a possibilidade de se tributar rendimentos auferidos pela prestação de serviços personalíssimos de acordo com o regime aplicável às pessoas jurídicas.

É sempre bom relembrar a clássica, porém atualíssima, lição de Eros Grau a respeito da vinculação do intérprete aos textos normativos. Longe de se defender a interpretação gramatical, quer-se chamar a atenção para a importância de se prestigiar os textos legais, ponto de partida do intérprete na atividade de construção da norma jurídica aplicável ao caso concreto. Daí que qualquer interpretação deve, necessariamente, respeitar aqueles limites mínimos impostos pelo próprio texto.

A resistência enfrentada pelos contribuintes, todavia, parece estar próxima do fim. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento da ADC nº 66, proposta pela Confederação Nacional da Comunicação Social, objetivando a declaração da constitucionalidade do referido dispositivo. A maioria dos ministros que já votou acompanhou o posicionamento da relatora, ministra Carmen Lúcia, que reconheceu a compatibilidade da regra com a livre iniciativa e a garantia de livre exercício de qualquer profissão ou atividade econômica. O processo foi retirado de pauta em razão de pedido de vista do ministro Dias Toffoli e deve retornar a julgamento ainda em dezembro.

Qualquer mudança legislativa deve ser feita pela via adequada. O que não se pode admitir é que a administração tributária crie requisitos despidos de qualquer base legal para evitar ou dificultar a aplicação de normas válidas, vigentes e eficazes. Este último comentário, embora soe óbvio, reafirma a importância de a administração tributária pautar a sua atuação pelo princípio da legalidade.

FONTE: Valor Econômico – Por Bruno Fettermann e José Luiz Crivelli Filho

 

 

 

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