O fato da decisão ou do ato administrativo ser dotada de caráter técnico, não serve de motivo para atribuir-lhe imunidade à revisão judicial.
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu acórdão (Agravo Regimental nº 1.083.955-DF), pelo qual tratou da possibilidade de revisão judicial de decisão proferida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Em linhas gerais, o STF entendeu que, além do recurso abordar questões fáticoprobatórias alheias às limitações da instância especial, o que já impediria o conhecimento do recurso, o caráter técnico da decisão do Cade, que foi proferida em processo administrativo instaurado para apurar práticas anticoncorrenciais, imporia “o dever de deferência do Judiciário às decisões técnicas adotadas por entidades reguladoras.”
O fato da decisão ou do ato administrativo ser dotada de caráter técnico, não serve de motivo para atribuir-lhe imunidade à revisão judicial
De acordo com a decisão do Supremo, o denominado “dever de deferência” estaria fundado tanto na falta de “expertise” do Poder Judiciário, quanto na possibilidade da intervenção judicial acarretar “efeitos sistêmicos nocivos à coerência e dinâmica regulatória administrativa.”
Não se pode esquecer que, conforme consta do Preâmbulo da Constituição Federal, o Poder Constituinte Brasileiro optou por ser o Estado Brasileiro um Estado Democrático de Direito, no qual há poderes independentes e harmônicos entre si (art. 2º da Constituição Federal). A independência e harmonia dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em um Estado Democrático de Direito, implica a existência de controle recíproco entre os Poderes.
Contudo, os limites daquele controle constituem discussão antiga, diante da inexistência de uma regra certa e determinada que imponha clara e precisamente os limites do exercício do controle recíproco pelos poderes, o que é, na realidade, impossível de determinar previamente.
Especificamente em relação ao controle exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos praticados pelo Poder Executivo, deve-se ressaltar que as agências reguladoras constituídas (Anatel, ANS, Anvisa, Cade, CVM etc.) obviamente integram o Poder Executivo e pertencem à administração pública Indireta (conforme critério orgânico adotado pela legislação).
Vale lembrar que a criação das agências reguladoras visava à constituição de órgãos da administração pública que tivessem por fim primordial a tomada de decisões técnicas em determinada área de especialização e alheias à influência política (o que não vem se mostrando eficaz no Brasil infelizmente, conforme exemplos recentes).
Não obstante a tecnicidade das decisões das agências reguladoras, estas não deixam de ser qualificadas como ato administrativo (gênero) e, por isso, não estão imunes ao controle judicial, ainda que o ato administrativo tenha sido praticado dentro da esfera de discricionariedade da administração pública.
De um modo geral, o controle judicial dos atos administrativos, segundo os mais renomados juristas do Direito Administrativo, deve abordar os motivos, ou seja, os pressupostos fáticos que fundamentam a prática do ato administrativo.
Ainda, a revisão judicial deverá abordar a finalidade mediata, que é o objetivo normativo, o interesse público subjacente à norma, bem como a finalidade imediata que consiste na competência atribuída para a prática do ato.
E, por fim, a revisão judicial engloba, também, a causa que nada mais é que a adequação dos pressupostos do ato administrativo ao seu objeto, conforme a finalidade do ato.
Portanto, os motivos, a finalidade e a causa do ato administrativo limitam a discricionariedade administrativa, motivo pelo qual tais requisitos do ato administrativo são passíveis de revisão judicial, independentemente da profundidade técnica do ato praticado.
Há que se ressaltar que o fato da decisão ou do ato administrativo praticado pelo Poder Executivo ser dotada de caráter técnico, não serve de motivo para atribuir-lhe imunidade à revisão judicial.
Aliás, não é sem razão que o Código de Processo Civil autoriza o magistrado a utilizar-se de peritos judiciais para o tratamento de questões técnicas, de modo a amparar o magistrado com análise imparcial acerca das questões técnicas, que ultrapassam seu conhecimento, permitindo-o fundamentar sua decisão tecnicamente com base em análise técnica realizada por perito judicial imparcial e alheio aos interesses das partes envolvidas.
Acrescente-se, ainda, que o dever de considerar as consequências jurídicas de uma decisão vem expresso na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, que em seu artigo 20 determina que “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”
Contudo, este dever de considerar as consequências práticas da decisão não impede que haja revisão judicial dos atos administrativos, tampouco impõe ao Poder Judiciário um pretenso “dever de deferência”.
Desse modo, além da limitação da atividade jurisdicional dos Tribunais Superiores à análise de questões de direito, não se pode afirmar que o Poder Judiciário estaria impedido de rever ato administrativo ante seu caráter técnico, muito menos em razão dos efeitos que a decisão judicial possa vir a causar, embora tais consequências práticas devam ser consideradas nas esferas administrativa e judicial, o que nos leva a acreditar que a decisão proferida pelo STF não foi feliz em seus fundamentos.
FONTE: Valor Econômico – Por Emerson Soares Mendes