O Cade deve urgentemente revisar seu conjunto ultrapassado de normas. pois as vítimas dos ilícitos concorrenciais e as ações de reparação ainda estão aqui.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) existe para efetivar as garantias constitucionais da liberdade de iniciativa, livre concorrência, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico, entre outras. Um dos instrumentos da política antitruste são as ações de reparação por danos concorrenciais (ARDCs), que buscam reparação efetiva às vítimas, podendo resultar na condenação do infrator ao pagamento em dobro dos prejuízos sofridos pelo lesado em razão de infrações à ordem econômica.
Tais quantias podem ser superiores às penalidades aplicadas pelo Cade, tornando arriscada a prática dos ilícitos, o que levaria à redução de práticas anticoncorrenciais. Todos ganhariam, menos os delinquentes econômicos.
Trata-se de um potente elemento de dissuasão e, em várias oportunidades, o Cade declarou que uma de suas prioridades seria fortalecê-lo. Os dados demonstram que isso não aconteceu. A utilização das ARDCs tem sido menor que o esperado: estudo recentemente publicado aponta que, de 2003 a dezembro de 2022, foram julgadas 39 apelações interpostas em ARDCs ajuizadas por particulares. Destas, os proponentes haviam obtido procedência em apenas três casos. O contraste com outros países é marcante. Nos EUA estima-se que, ao ano, são ajuizadas 750 ações indenizatórias por danos concorrenciais. Assim, cartelizar-se nos EUA é mais arriscado que aqui.
Dentre as várias causas para esse estado de coisas, encontra-se a ação do próprio Cade. O seu tratamento para a oferta de provas contra os predadores econômicos foi mal desenhado: a autoridade optou por um regime que privilegia o sigilo ao invés da publicidade, que cria obstáculos ao invés de facilitar o acesso e, ao fim, na prática, pune a vítima e blinda o praticante do ilícito. O Cade, porém, tem condições de revêlo e brindar a sociedade com mais um de seus acertos.
A Resolução nº 21/2018 e a Portaria nº 869/2019 criam uma muralha impenetrável que protege os infratores, prejudica as vítimas que ficam às voltas com a dificuldade diabólica de produzirem provas. De fato, as ARDCs devem ser acompanhadas de sólidas provas acerca do ilícito, sua autoria e nexo causal com os danos experimentados; a melhor forma de provar isso seria utilizar as provas produzidas pelo Cade, que têm robustez técnica e fé pública. Por isso, o artigo 1º da Resolução nº 21/2018 estabelece a regra da publicidade dos “documentos e informações constantes dos Processos Administrativos para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica, inclusive os oriundos de Acordo de Leniência, Termos de Compromisso de Cessação de Conduta (TCC) e de ações judiciais de busca e apreensão”.
Porém, a norma tira com muitas mãos o que o artigo 1º dá com uma: erige um inadmissível “maximalismo do segredo”, em detrimento da regra geral de publicidade, em afronta à Constituição Federal (artigo 5º, LX e art. 37), à Lei 9.784/1999 (artigo 2º, LX) e ao Código de Processo Civil (artigo 189). O artigo 2º da Resolução nº 21/2018 funciona como linha de contenção à efetividade do artigo 1º, fixando uma série de exceções à regra geral da publicidade, garantindo, inclusive, a manutenção do sigilo “mesmo após a decisão final pelo Plenário do Tribunal do Cade”. Permite-se absurda postergação infinita do sigilo, que erode a possibilidade de ressarcimento das vítimas.
A resolução exige, nos termos do artigo 3º, que haja expressa determinação legal, decisão judicial específica, autorização do signatário do acordo de leniência ou do compromissário do TCC ou, ainda, cooperação jurídica internacional, para obtenção de documentos com fé pública e de teor irrefutável. Perante tais exigências, como afirmar que essa é uma política de defesa da concorrência? Com todo o respeito, a norma infralegal protege os infratores.
Na Portaria nº 869/2019, há três hipóteses em que se permite a publicização de documentos e informações classificados como de acesso restrito: por decisão do conselheiro relator (artigo 2º); nos casos de “pedido de excepcional de concessão de acesso aos documentos e às informações”; e em processos julgados antes da Resolução nº 21/2018. A escolha por expedientes excepcionais, complexos e custosos é uma inversão de papéis: normas que dissuadiriam os praticantes de má conduta concorrencial terminam por beneficiá-los.
Os argumentos para a manutenção do regime normativo não são consistentes. Afirma-se que ele busca preservar os mecanismos de atuação do Cade. Mas o exercício do poder de polícia não pode ser a causa da supressão do direito à reparação judicial e tal desenho pode e deve ser aprimorado e bem balanceado.
Vibramos com o filme “Ainda Estou Aqui”; deleitamos com o tour de force e encanto de Fernanda Torres no início do ano. Porém, o grande mérito do filme é iluminar e levar a história brasileira para mais perto da verdade, afastando a cultura do segredo e da ocultação sistemática das coisas erradas. O mundo empresarial tende a criar sistemas de sigilo. Cabe ao Estado impedir a hipertrofia da conveniente quebra de transparência e não mimetizar os supervisionados. Queremos ver o que faz a “mão invisível do mercado” e a nossa lupa é a transparência.
Um especialista em Direito Concorrencial sabe que as ARDCs são espinhosas e a balança pende para os infratores. O Cade deve urgentemente revisar seu conjunto ultrapassado de normas pois as vítimas dos ilícitos concorrenciais e as ações de reparação ainda estão aqui. Porque as vítimas e o Judiciário devem ser atores, junto com o Cade, da defesa da concorrência. Porque corrigir esse erro constrói um país melhor.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR ERNESTO TZIRULNIK E LEA VIDIGAL