Contribuinte, já sufocado pela complexidade normativa, continua a conviver com a instabilidade institucional.
O Decreto 12.466/2025 provocou agitação no mundo corporativo e, como corolário, nos espaços congregacionais dos juristas. Ao majorar abruptamente as alíquotas do IOF, o governo reacende debates antigos, mas jamais superados, sobre os limites do poder de tributar sem lei.
O novo regulamento, publicado no último dia 22, com recuo parcial e súbito do governo no dia seguinte, trouxe modificações substanciais na regulamentação do IOF, com destaque para a majoração significativa de alíquotas sobre operações de crédito, especialmente aquelas envolvendo pessoas jurídicas.
A alíquota máxima saltou de 1,88% para 3,95%, configurando aumento superior a 100% em determinadas hipóteses. O texto ainda incluiu operações de “risco sacado” no campo de incidência do IOF/Crédito, criou nova hipótese de tributação em câmbio para remessas ao exterior com finalidade de investimento, e impôs novas exigências para seguros com aportes elevados. Não se trata, ora, de ajuste marginal. A modificação é relevante e com efeitos imediatos sobre o setor produtivo.
Diante disso, muitos advogados já defendem o ingresso em juízo para questionar a novel regulamentação do IOF. Especialmente sob o viés doutrinário de que, quando a Constituição autorizou que as alíquotas desse tributo fossem alteradas por ato do Poder Executivo, abrindo exceção à legalidade estrita e às anterioridades de exercício e mínima, o fez exclusivamente nos casos em que os objetivos fossem de natureza extrafiscal. Quando o IOF é manejado com finalidade arrecadatória, argumentam, exigir-se-ia que sua majoração fosse promovida por meio de lei formal, submetida às vacâncias constitucionalmente impostas [1].
Alguns vão além, estendendo o plano de análise constitucional para o campo posposto. Sustentam que as condições e limites para a alteração das alíquotas do IOF por decreto devem ser examinados sob o manto da legislação infraconstitucional, como prescreve o § 1º do art. 153 da Constituição.
Nesse raciocínio, tanto o art. 65 do Código Tributário Nacional quanto o § 1º do art. 1º da Lei 8.894/94 condicionariam o uso dessa prerrogativa presidencial à realização de política monetária, excluindo a possibilidade de objetivos meramente arrecadatórios [2].
Se os anseios efervescem do lado do contribuinte, na outra vértice, parece-nos que o fisco se deita no berço esplêndido construído pela jurisprudência permissiva do Supremo Tribunal Federal, que flexibiliza, gradualmente, a rigidez da legalidade tributária [3]. O que se vê, em sucessivas decisões, é a consolidação de uma lógica segundo a qual o IOF pode sim cumprir função arrecadatória, sem que isso descaracterize sua natureza e sem que se exija, para tanto, aprovação legislativa formal. Debrucemo-nos.
Em RE 1.480.048/RS, discutia-se a majoração do IOF promovida pelo Decreto 10.797/2021 com finalidade de compensar perdas fiscais. O STF entendeu que a existência de finalidade arrecadatória não impede a constitucionalidade da majoração por decreto. Consta do voto:
“É certo que eventual prevalência de finalidade extrafiscal adotada por um tributo não impede, até como consequência lógica, sua função arrecadatória, em menor ou maior grau”.
Em outro julgado recente, o RE 1.472.012/RS, também confrontando o Decreto 10.797/2021, o argumento do contribuinte era de que o aumento visava exclusivamente o custeio do programa Auxílio Brasil, o que revelaria desvio de finalidade. O relator, no entanto, descartou a relevância da motivação política externa ao texto normativo:
“A legitimidade do aumento de alíquotas do IOF, por meio de decreto do Presidente da República, não é comprometida por declarações — de natureza política — das autoridades […] cabendo ao Judiciário limitar o controle jurisdicional à constitucionalidade e legalidade do tributo”.
Sem a intenção de cansar o leitor, mas de demonstrar a unissonância da Suprema Corte, vão nessa mesma linha o RE 1.526.741/SP; RE 788.064-AgR/SP e o RE 800.282-AgR/SP, esses últimos relativos à discussão, de outras décadas, mas ainda repercutidas, da majoração do IOF para compensar a extinção da CPMF.
A interpretação dada pelo STF, ao nosso ver, cria uma zona de conforto perigosa: confere ao Poder Executivo uma prerrogativa de alterar a carga tributária de forma unilateral e imediata, desestabilizando as pedras angulares do sistema constitucional tributário. O contribuinte, já sufocado pela complexidade normativa, continua a conviver com a instabilidade institucional de um ordenamento que permite a surpresa arrecadatória.
Não há de se negar que o Estado, como todo detentor de poder, age de modo a se desvencilhar das amarras que lhe são postas pelo desenho constitucional [4]. Do outro lado, o guardião da Carta parece, em lamentável contradição, abrir alas para essa transposição das limitações constitucionais ao poder de tributar. A invocação da política, mais uma vez, a justificar os crimes de lógica [5].
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[1] SCHOUERI, Luís Eduardo; VARELLA, Camila Cavalcanti. IOF e as operações de mútuo. Grandes questões atuais de direito tributário, p. 219.
[2] BOMFIM, Diego. Extrafiscalidade: identificação, fundamentação, limitação e controle. São Paulo: Noeses, 2015, p. 154-158 e 250-254.
[3] BOMFIM, Diego. Legalidade Tributária: contributo para a sua correta interpretação. Revista Argumentum-Argumentum Journal of Law, v. 23, n. 3, p. 999, 2022.
[4] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 42ª ed., São Paulo: Juspodium Malheiros, 2022.
[5] BECKER, Alfredo Augusto. Carnaval Tributário. 2º Ed., São Paulo: Lejus, 2004, p. 115.
FONTE: JOTA – POR CAIO ROBERTO SILVEIRA