A instituição da CBS e do IBS sobre a transmissão onerosa de bens imóveis e direitos reais sobre imóveis revela-se inconstitucional.
A Constituição Federal estabelece um sistema rígido de repartição de competências tributárias entre União, Estados, Distrito Federal e municípios, delimitando o campo material dentro do qual cada ente federativo pode exercer seu poder de tributar, sem invasão da competência alheia. Desta forma, as competências tributárias são privativas, garantindo a cada ente um campo exclusivo para a instituição de tributos, salvo exceções previstas expressamente no próprio texto constitucional, como a instituição de impostos extraordinários pela União em situação de guerra.
Essa delimitação rígida de competências tributárias constitui garantia fundamental ao contribuinte, prevenindo bitributação e possível efeito confiscatório decorrente da sobreposição de tributos sobre o mesmo fato econômico ou negócio jurídico revelador de capacidade contributiva.
Com a reforma tributária do consumo, a Emenda Constitucional (EC) nº 132/2023 alterou o texto constitucional, introduzindo competência compartilhada (artigo 156- A) entre Estados, Distrito Federal e municípios para instituir, por lei complementar, imposto sobre “operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços” (IBS). A mesma competência foi atribuída à União Federal (artigo 195, V) para a instituição da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Com base na EC 132, a Lei Complementar (LC) nº 214/2025 estabeleceu a incidência do IBS e da CBS sobre quaisquer operações onerosas com bens e serviços, salvo exceções expressas, como casos de imunidade e isenção. Para essa finalidade, a LC 214 definiu o conceito de bens de forma abrangente, incluindo bens imóveis. Ao regular o regime tributário específico aplicável a operações com imóveis, o artigo 252 da LC 214 estabelece expressamente que o IBS e a CBS incidem sobre a alienação, cessão e atos translativos ou constitutivos onerosos de direitos reais sobre imóveis, inclusive decorrentes de incorporação imobiliária e de parcelamento do solo.
Contudo, embora a literalidade das alterações introduzidas pela EC 132 não apresente qualquer restrição expressa ao conceito de bens, aparentando abranger imóveis, a interpretação sistemática da Constituição impõe limites implícitos ao campo material de incidência do IBS e da CBS, de modo a garantir a observância da estrutura de repartição de competências tributárias prevista no texto constitucional.
No caso da transferência onerosa de bens imóveis, o artigo 156, II, da Constituição Federal, atribui exclusivamente aos municípios competência para instituir o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), que incide sobre a transmissão “intervivos”, por ato oneroso, de bens imóveis e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição. Dessa forma, a incidência da CBS e do IBS sobre essas mesmas operações onerosas com bens imóveis invade a competência municipal, contrariando o princípio da exclusividade das competências tributárias.
As normas de competência previstas na Constituição para instituição do IBS e da CBS devem ser interpretadas sistematicamente, em conjunto com as demais normas de competência tributária. Ao atribuir competência aos municípios para instituição do ITBI sobre operações onerosas com imóveis, o artigo 156, III, da Constituição, ao mesmo tempo, constitui uma limitação implícita para instituição de outros tributos sobre essas operações. Ao não respeitar essa limitação, a LC 214 permite a sobreposição do IBS e da CBS ao ITBI, gerando carga tributária excessiva sobre a transmissão onerosa de imóveis, configurando inaceitável bis in idem.
É importante ressaltar que a reforma tributária do consumo já terá impactos significativos sobre o setor imobiliário, especialmente no segmento de incorporação. A medida resultará em aumento da carga tributária sobre a alienação de bens imóveis, que atualmente podem ser tributados pelo Regime Especial de Tributação (RET), mediante a aplicação de uma alíquota agregada de 4% sobre a receita recebida, abrangendo PIS, Cofins, IRPJ e CSLL. Mesmo fora do RET, empresas do setor que adotam o regime de lucro presumido podem tributar a venda de imóveis com uma alíquota agregada de apenas 6,73%, também incluindo IRPJ e CSLL.
Além da maior complexidade operacional para o cálculo dos tributos, a incidência cumulativa do IBS, CBS e ITBI sobre essas operações – somada ao IRPJ e à CSLL, que não são objeto da reforma – elevará expressivamente a carga tributária sobre a alienação de imóveis. Esse cenário compromete tanto a segurança jurídica quanto a rentabilidade das empresas do setor. Adicionalmente, esses custos adicionais serão inevitavelmente repassados ao consumidor final, dificultando ainda mais o acesso à moradia e agravando o déficit habitacional no Brasil.
Conclui-se que, embora a literalidade do texto introduzido pela EC 132 não estabeleça expressamente os limites para determinação da incidência do IBS e da CBS sobre operações com bens e serviços, a LC 214 não pode invadir o campo material das demais normas de competência tributária previstas na Constituição Federal. Assim, a instituição da CBS e do IBS sobre a transmissão onerosa de bens imóveis e direitos reais sobre imóveis revela-se inconstitucional, pois invade a competência municipal para tributar essas operações por meio do ITBI, além de impor ao contribuinte uma sobreposição de tributos, resultando em uma carga excessiva sobre as mesmas operações.
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR HUGO LEAL