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REFORMA E A CRIMINALIZAÇÃO DO DEVEDOR CONTUMAZ

14 de março de 2025

A definição clara dos limites entre inadimplência e evasão fiscal é essencial para evitar insegurança jurídica, e seria fundamental que o legislador enfrentasse essa lacuna normativa.

A criminalização da inadimplência tributária é um dos temas mais polêmicos no âmbito do direito penal tributário. Em especial, a figura do “devedor contumaz” e sua responsabilização criminal pelo não pagamento do ICMS tem sido objeto de grave insegurança jurídica. Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidaram o entendimento de que a declaração e o não recolhimento do tributo podem configurar crime do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/90, desde que presentes elementos como a “contumácia” e o “dolo de apropriação”.

O artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/90 estabelece que configura crime tributário “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. O dispositivo tem sido interpretado pelo STJ e pelo STF de modo a abarcar também casos em que o contribuinte repassa o ônus econômico do tributo ao consumidor (como poderia fazer, por exemplo, com qualquer outro custo, como o da reforma de sua loja) e, posteriormente, não efetua o recolhimento aos cofres públicos, ou seja, quando atua como contribuinte inadimplente, gerindo seu próprio patrimônio, não o do Estado. É por isso que esse entendimento nos parece inconstitucional, por implicar em vedada analogia in malam partem indevida com relação ao crime de apropriação indébita. Entre nós, é vedado ao Poder Judiciário criar normas incriminadoras, seja do zero, seja por analogia, seja por mudança nos seus pressupostos para alcançar novas condutas.

Fato é que, apesar disso, o entendimento já é predominante nessas Cortes. Começou a se consolidar no julgamento do HC 399109 pelo STJ, em 2018, e posteriormente, no julgamento do RHC 163334 pelo STF, em 2019. Nessa decisão, o STF fixou a tese de que “o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”. A partir de então, a contumácia e o dolo de apropriação passaram a ser requisitos fundamentais para a caracterização do crime.

Mas quantas vezes o contribuinte precisa deixar de pagar o ICMS para ser considerado contumaz? Na falta de uma norma federal definindo esse conceito com validade para todos os entes tributantes, haveria que recorrer a cada Estado (e a cada município, se se tratar de ISS) da federação para saber o que configura contumácia. Há Estados que regulam a matéria, há outros que não regulam. Essa é uma situação por si só delicada quando estamos falando em ameaça de pena de prisão, matéria que costuma estar reservada para normas que se aplicam a todo território nacional.

Na prática, o que se vê é a construção caso a caso do conceito de contumácia pelos tribunais, que (e isso é surpreendente) não têm se apoiado nos conceitos legais de “devedor contumaz” já estabelecidos por diversos Estados da federação. Os tribunais têm, de forma geral, criado critérios próprios para definir quando a inadimplência reiterada configura crime.

O STF tem afastado a contumácia quando há apenas duas inadimplências consecutivas (HC 216186, j. 02/03/2023). No STJ, afastou-se a contumácia em casos de três atrasos consecutivos (AREsp 2787459, DJEN 16/12/2024; HC 937682, DJe 04/10/2024) e até mesmo seis atrasos não consecutivos, desde que o réu fosse primário e sem antecedentes (HC 569856, j. 11/10/2022).

Por outro lado, a contumácia tem sido reconhecida em decisões que envolvem quatro ou mais atrasos consecutivos. No STF, esse reconhecimento ocorreu em casos de quatro inadimplências consecutivas (RHC 249185, j. 18/12/2024), cinco vezes consecutivas (RE com Agr 1294738, j. 10/11/2020) e sete vezes não consecutivas ao longo de dois anos (RHC 170556, min. Luiz Fux, 27/03/2020). No STJ, a contumácia foi confirmada em casos de inadimplência por sete meses consecutivos (REsp 2116521, DJEN 04/02/2025), oito vezes ao longo de um ano (AgRg no EDcl no REsp 2013545, j. 02/10/2023) e dez não consecutivos (AREsp 2787336, DJEN 12/12/2024).

Outro elemento exigido pelo precedente do STF é o dolo de apropriação, que deve ser demonstrado para a caracterização do crime. Contudo, na maioria dos casos, esse dolo tem sido presumido com base apenas na reiteração do inadimplemento, ou seja, a mesma circunstância fática (a reiteração) acaba servindo como prova de dois requisitos para afirmar o caráter criminoso da conduta. Em algumas situações, foram também considerados elementos adicionais, como o encerramento irregular da empresa, a existência de parcelamentos não adimplidos, a criação de obstáculos à fiscalização e o uso de “laranjas” no quadro societário.

O enquadramento do devedor contumaz como criminoso tributário tem consequências gravíssimas e a ausência de critérios objetivos para a caracterização da contumácia e do dolo de apropriação abre margem para decisões divergentes e sanções desproporcionais. A complexidade da temática exige um debate aprofundado, pois a mera inadimplência não deve ser objeto de sanção penal.

Embora a reforma tributária tenha introduzido mudanças estruturais no sistema fiscal brasileiro, não tratou diretamente desse tema. A definição clara dos limites entre inadimplência e evasão fiscal é essencial para evitar insegurança jurídica, e seria fundamental que o legislador enfrentasse essa lacuna normativa.

Fernanda Vilares, Heloisa Estellita e Aldo de Paula Júnior são, respectivamente, coordenadoras e consultor da equipe da pesquisa “Evasão Fiscal: uma proposta legislativa para debate”, do Núcleo de Direito Penal e Processual Penal da FGV Direito SP

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

FONTE:  VALOR ECONÔMICO – POR FERNANDA VILARES, HELOISA ESTELLITA E ALDO DE PAULA JÚNIOR

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