Decisão é válida para pedido de desconsideração da personalidade jurídica no curso do processo.
Uma recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou o entendimento de que devem ser pagos honorários advocatícios (de sucumbência) quando for negado o pedido, realizado no curso de um processo de cobrança (execução), para que bens de sócio sejam bloqueados para o pagamento de dívida da empresa – o chamado Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica (IDPJ). O julgamento se deu por maioria dos votos.
Especialistas afirmam que a definição pela Corte Especial pode passar a inibir pedidos de IDPJ – o que reduziria o risco de sócios serem incluídos nos processos de cobrança das empresas. Com isso, é provável também uma diminuição de demandas no Judiciário. No mais recente relatório “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foram registrados 83,4 milhões processos em trâmite no país, sendo mais de 50% ações de execução, com uma taxa de congestionamento média que passa de 80% (de cada cem processos 80 não são resolvidos).
Além disso, a obrigação de pagamento dos honorários de sucumbência pode tornar a recuperação de créditos mais cara, o que impactaria o mercado por meio do spread bancário (diferença entre os juros que o banco cobra ao emprestar e a taxa que ele mesmo paga ao captar dinheiro).
“Considerando a efetiva existência de uma pretensão resistida, manifestada contra terceiro(s) que até então não figurava(m) como parte, entende-se que a improcedência do pedido formulado no incidente, tendo como resultado a não inclusão do sócio (ou da empresa) no polo passivo da lide – situação que se equipara à sua exclusão quando indicado desde o princípio para integrar a relação processual -, mesmo que sem a ampliação do objeto litigioso, dará ensejo à fixação de verba honorária em favor do advogado de quem foi indevidamente chamado a litigar em juízo, como vem entendendo a doutrina”, declarou no voto o ministro relator Ricardo Villas Bôas Cueva (REsp 2072206).
O tema da desconsideração da personalidade jurídica, para alcançar bens de sócios, é debatido desde antes da reforma do Código de Processo Civil (CPC) no ano de 2015. Nas discussões sobre direito do consumidor, meio ambiente, defesa da concorrência e, especialmente, trabalhistas era comum primeiro o bloqueio da conta bancária do sócio e, depois, ele podia tentar provar que não deveria pagar por aquilo.
“Não é porque o sócio tem dinheiro que deve responder pela dívida da empresa” — Cassio S. Bueno.
No Judiciário, uma corrente defendia que seria preciso entrar com uma ação judicial própria (novo processo) contra o potencial devedor para o reconhecimento dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica e o consequente redirecionamento da dívida para sócios ou administradores. Outra linha era de que se a ação de execução já está em estágio avançado no Judiciário e se chegou à conclusão de que os bens dos sócios se confundem com os da empresa, por exemplo, seria possível pedir ao juiz a desconsideração naquele mesmo processo.
Em 2015, com a reforma do CPC ficou estabelecido um rito para o IDPJ. “Isso foi tido como um avanço porque ajudou a simplificar a forma como se introduz o diálogo com terceiro que seria atingido por meio da cobrança”, afirma Elias Marques de Medeiros Neto, professor de Direito Processual Civil e sócio de resolução de disputas. “Ficou estabelecido que, se averiguados certos indícios, os sócios podem ser apontados como potenciais responsáveis no processo já em curso, o juiz intima, eles se defendem e então há o julgamento”, diz.
Tais requisitos para a promoção da desconsideração da personalidade jurídica de sócio estão no artigo 50 do Código Civil: desvio de finalidade (fraude para lesar credores) e confusão patrimonial (transferência de ativos ou passivos, por exemplo).
Porém, acabou surgindo a dúvida se haveria condenação ao pagamento de honorários de sucumbência para o advogado do sócio, quando o IDPJ é julgado improcedente. Afinal, ele teria tido o trabalho de defender o administrador inocente. A questão virou polêmica por haver divergência, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. “Agora, os tribunais do país que julgarem o assunto deverão se orientar pelo recente julgado da Corte Especial”, diz Medeiros.
“Ficou expressamente previsto que tanto faz se o debate sobre a desconsideração da personalidade jurídica ocorreu no procedimento comum ou por meio de incidente, conforme o voto do ministro Cueva, cabem os honorários”, afirma. Para Medeiros, o acórdão só não foi preciso quanto à dosagem. “Pode ser aplicado o honorário de 10% a 20% dos valores envolvidos, ou o arbitramento de acordo com o trabalho desenvolvido pelo advogado, outra polêmica na advocacia”.
Segundo especialistas, a decisão também é um alerta de que o IDPJ precisa ser usado de forma responsável para evitar o pagamento de honorários de sucumbência. “Ganha importância fazer uma pesquisa prévia, por exemplo, de registros de imóveis, transferências de bens em órgãos públicos como Detran, que são possíveis de serem feitos no formato extrajudicial, para saber se de fato há indícios para a desconsideração da personalidade jurídica”, afirma Medeiros.
Outro meio de prevenção de riscos, diz o advogado, é fazer a produção antecipada de provas prevista no artigo 381 e seguintes do CPC. “É possível ajuizar ação para fazer uma perícia previamente, buscando a produção de documentos e, assim, saber se os requisitos para um IDPJ estão presentes”, afirma.
O recurso analisado pela Corte Especial do STJ é de uma securitizadora de créditos mercantis. Segundo o advogado Felipe Ballarin Ferraiolli, que representou o sócio no processo, o próximo passo é executar os honorários. “Prevaleceu o direito do advogado porque o IDPJ demanda um trabalho a mais do profissional que é contratado para defender os sócios”, afirma. “Agora, há prazo para a proposição de embargos e podem ainda tentar recorrer no STF [Supremo Tribunal Federal], mas acho difícil que modifiquem a decisão”, diz.
O ministro Cueva apontou esta discussão para definição pela Corte Especial em razão de divergência entre as Turmas. Ele convocou algumas entidades para participar, entre elas o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). “O Judiciário não pode tentar alcançar o patrimônio de alguém sem uma ação para justificar que o sócio, pessoalmente, tenha que responder pela dívida da empresa, assim, é como uma ação nova e cabem honorários quando é rejeitada ou acolhida”, diz o presidente do IBDP Cassio Scarpinella Bueno.
O especialista lembrou que a imposição de honorários de sucumbência quando o trabalhador perde, por meio da reforma trabalhista, causou uma queda enorme nas reclamações ao Judiciário. “Agora, sobre o IDPJ, é uma questão de litigância responsável, quase um ‘pensa duas vezes’ porque não é porque o sócio tem dinheiro que deve responder pela dívida da empresa”, afirma.
A desconsideração da personalidade jurídica, explica Bueno, não é para um caso de crise ou porque teve pandemia, mas para quando o sócio usa a empresa para benefício pessoal.
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) também participou do processo julgado pela Corte Especial. Por meio de nota enviada ao Valor, disse entender que “os honorários de sucumbência em caso de rejeição do incidente de desconsideração da personalidade jurídica devem ser aplicados de forma equânime para as partes, independente de quem tenha o direito reconhecido”. “A Febraban respeita a decisão do STJ e aguarda a publicação do acórdão para avaliar eventuais medidas cabíveis”, concluiu.
FONTE- VALOR ECONÔMICO – POR LAURA IGNACIO — DE SÃO PAULO