Ministros negaram às empresas o direito de ter as mesmas regras processuais que os consumidores.
A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que as seguradoras não têm as mesmas prerrogativas processuais que os consumidores, como o direito de ajuizar uma ação na cidade onde mora (eleição de foro) e a inversão do ônus da prova. Segundo representantes do setor, a decisão pode gerar aumento dos valores dos prêmios, pagos pelos consumidores para garantir as indenizações. O julgamento, realizado ontem, foi unânime.
Os ministros analisaram três recursos de concessionárias de energia – da Copel, do Paraná, e dois da RGE Sul Distribuidora de Energia, do Grupo CPFL – contra a Sompo Seguros e HDI Seguros. As ações foram movidas pelas seguradoras como substitutas processuais dos consumidores lesados. Em um dos casos, pede reparação por danos materiais após ter pago indenização a um segurado que teve equipamentos danificados por descarga elétrica.
As empresas de seguro movem esses processos para ajudar nos custos dos prêmios. Se tiverem êxito, levam o valor das indenizações. O que buscavam era o direito de escolher o foro competente – na jurisdição da sede da empresa e não do réu.
Ainda pleiteavam a inversão do ônus da prova, exceção à regra geral do Processo Civil prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que determina que quem alega um fato deve produzir a prova. Em ações consumeristas, essa lógica se inverte: quem deve provar é a empresa, pois o consumidor é a parte mais vulnerável do processo.
Segundo advogados, as seguradoras vinham movendo as ações nos locais onde estão sediadas. Com o benefício da inversão do ônus da prova, a condenação das concessionárias e fornecedores de produtos e serviços era quase “automática”.
Agora, os processos serão reiniciados nos foros competentes, sem esse benefício. “A gente não tinha como fazer a prova, que era uma prova negativa de que a concessionária não tinha responsabilidade. Era muito difícil de conseguir provar”, afirma o advogado Marcelo Montalvão, sócio do Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, que representa a RGE no caso. “Como tinha a inversão do ônus da prova em favor da seguradora, ela sequer guardava o aparelho sob sua custódia, então não tinha como fazer uma perícia. Era uma condenação automática.”
A relatora dos recursos, a ministra Nancy Andrighi, lembrou que a jurisprudência do STJ é no sentido de que a sub-rogação se limita a transferir os direitos de natureza material (a possibilidade de recuperar os créditos dos consumidores), não abrangendo os de natureza processual, que decorrem de condições personalíssimas do credor.
“Não é possível a sub-rogação da seguradora em norma de natureza exclusivamente processual e que advém de uma benesse conferida pela legislação especial ao indivíduo considerado vulnerável nas relações jurídicas”, afirmou.
Nancy ressaltou que a opção pelo foro de domicílio do consumidor é uma benesse conferida apenas a ele. “Busca-se mediante tal benefício legislativo, privilegiar o acesso à Justiça ao indivíduo que se encontra em situação de desequilíbrio”, disse. No mesmo sentido, acrescentou, não pode haver a sub-rogação da inversão do ônus da prova.
A relatora fixou a seguinte tese: “O pagamento de indenização por sinistro não gera para a seguradora a sub-rogação de prerrogativas processuais dos consumidores, em especial quanto a competência na ação regressiva”. O parecer do Ministério
Público Federal (MPF) foi na mesma linha (Tema 1282 – REsp 2092311).
Vitor José de Mello Monteiro, que representa a Sompo no caso, defendeu que o Código de Defesa do Consumidor é a legislação aplicável ao caso e que a regra geral de sub-rogação não traz limitações. “Se não há limitação na lei, com a devida vênia, não me parece que o intérprete poderia fazer essa limitação”, afirmou ele, em sustentação oral. Também defendeu que não haveria direitos personalíssimos inerentes ao consumidor.
“A lei foi feita para proteger o mais fraco e a seguradora não é o mais fraco” — Cassio S. Bueno
Daniel Bittencourt Guariento, que defende a Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), parte interessada na ação, disse que uma decisão desfavorável aumenta os custos para as seguradoras, que seriam repassados aos consumidores. Isso porque na composição do cálculo dos prêmios, é incluída a perspectiva de êxito nos processos ajuizados em nome dos consumidores.
“Alterar a regra do jogo nessas ações de consumo, limitando direitos e prerrogativas desses consumidores, tende a diminuir o êxito dessas ações, a fazer com que haja mais dificuldade na procedência dos pedidos de indenização”, afirmou ele, na sessão.
O professor Cassio Scarpinella Bueno, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), também parte interessada, concorda com a tese fixada, pois os consumidores devem ter proteções processuais específicas. “É uma prerrogativa inerente ao consumidor que tenta equilibrar a regra do jogo. A lei foi feita para proteger o mais fraco e a seguradora não é o mais fraco”, diz.
Segundo Bueno, o STJ já se manifestou sobre esse tema, mas como a decisão agora é da Corte Especial, a tese vale para todos os integrantes do direito público, administrativo e privado.
Marcelo Montalvão, do Ayres Britto, entende que o julgamento foi uma “grande vitória”. “Traz uma segurança maior para as concessionárias, porque elas não ficam mais vulneráveis a realizar suas defesa em locais diferentes do seu foro, bem como cabe à seguradora realizar a prova a respeito da responsabilidade ou não das concessionárias”, afirma.
Ele não vê como a decisão possa gerar um aumento no custo dos prêmios. “Antes, as seguradoras estavam tendo um enriquecimento sem causa. Pagavam o segurado automaticamente, sem governança adequada, porque terminavam passando aquilo para a concessionária. Agora caberá fazer uma governança mais criteriosa.”
Em nota, a HDI Seguros diz que não teve acesso à decisão. Quando for publicada, analisará o conteúdo e, se necessário, tomará as medidas cabíveis dentro do âmbito processual. “A companhia também reforça que essa situação não está relacionada à entrega dos seus serviços e ao atendimento aos segurados.”
Procuradas pelo Valor, a Sompo Seguros, Copel e RGE não deram retorno até o fechamento da edição.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR MARCELA VILLAR — DE SÃO PAULO