É indispensável que a corte efetivamente decida sobre algo que assola o Judiciário, empresas e o próprio Estado.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) retomará nesta quarta-feira (19/2) o julgamento do Tema Repetitivo 1198, o tema da “litigância predatória”.[1]
A Corte Especial irá decidir sobre a “possibilidade de o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, exigir que a parte autora emende a petição inicial com apresentação de documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo, como procuração atualizada, declaração de pobreza e de residência, cópias do contrato e dos extratos bancários” (cfe. afetação). O REsp representativo da controvérsia é oriundo de IRDR, que tramitou no TJMS, no âmbito do qual foi pacificada tese reconhecendo a possibilidade de atuação do magistrado.
Cerca de um ano após o início do julgamento (em 21 de fevereiro de 2024), e já proferidos o voto do relator, ministro Moura Ribeiro, e o voto parcialmente divergente do ministro Humberto Martins, o tema volta à pauta mais inevitável do que nunca.
De lá para cá, o Conselho Nacional de Justiça, atento ao problema do abuso do direito de ação, aprovou recomendação sobre a litigância abusiva (gênero que compreende a predatória), a Recomendação CNJ 159/2024. Reconhece o CNJ os riscos ao acesso à justiça, recomendando aos magistrados que, “no exercício do poder geral de cautela e de forma fundamentada”, determinem diligências “a fim de evidenciar a legitimidade do acesso ao Poder Judiciário” (art. 3º).
A tônica da Recomendação do CNJ é de flexibilidade e atipicidade – o que, aliás, é totalmente consentâneo com o cenário complexo e dinâmico de tais formas abusivas de litigar – e, por isso, traz anexos com listas exemplificativas (é bom frisar!) de medidas que podem ser adotadas para resguardar o adequado acesso à justiça a quem dela efetivamente precisa.
A Recomendação do CNJ não é o objeto desse breve texto, mas é crucial para o julgamento que se aproxima. Vozes têm aventado que, com a Recomendação, o problema estaria resolvido, ou ao menos já sendo endereçado, e que isso acarretaria a perda de objeto – ou a desnecessidade – de julgamento do Tema 1198 pelo STJ.
Não é esse o caso, contudo.
A Recomendação não esvazia – antes fortalece – a necessidade de apreciação do tema pela Corte da Cidadania, o tribunal com a missão constitucional de uniformizar e dar coerência à interpretação da legislação federal. A Recomendação recomenda; não impõe.[2] A tese firmada em Repetitivo, essa sim, é precedente vinculante com força obrigatória em todo o território nacional (art. 927, III, do CPC). É para situações como esta, aliás, que a técnica de julgamento dos recursos repetitivos cai como uma luva.[3]
É indispensável, portanto, que o STJ paute – e efetivamente decida o tema –, que já assola o Judiciário e empresas e instituições de todos os setores, além do próprio Estado.
Quanto à tese em si, o debate hoje gira em torno da proposta do relator, ministro Moura Ribeiro,[4] e da proposta parcialmente divergente apresentada pelo ministro Humberto Martins,[5] os votos proferidos antes da vista coletiva.
Ambas as teses consagram o poder de cautela e o dever de prevenção do magistrado no cenário da litigância predatória, o que é fundamental. A divergência, quanto ao essencial, está na proposta do ministro Humberto Martins, que delimita a atuação do magistrado à determinação de apresentação de documentos “de identificação e/ou probatórios previstos na lei processual”.[6]
Embora louvável a iniciativa de balizar os poderes do magistrado, é a tese do relator, ministro Moura Ribeiro, que mais se coaduna com a sistemática processual brasileira. Isso se dá porque a legislação processual brasileira não define, em rol expresso ou taxativo, quais são os “documentos indispensáveis à propositura da ação” (CPC, art. 320), tampouco indica quais são, um a um, os elementos que demonstram o preenchimento das condições da ação ou pressupostos processuais (CPC art. 485, IV, V e VI, dentre outros).
O legislador não “prevê na lei processual” lista de documentos ou elementos aptos a demonstrar a regularidade do processo e da pretensão, já que eventual listagem ou pré-identificação teria grandes riscos de tornar-se rapidamente obsoleta, considerando a dinamicidade das relações e a complexidade dos problemas apresentados ao Judiciário.
O regime processual brasileiro é, no geral e especialmente quanto ao ponto, um regime de atipicidade, um regime que trabalha com conceitos jurídicos que são concretizados caso a caso pela atividade concorrente dos diversos intérpretes, dentre eles – e em especial – o juiz. É um sistema que trabalha com os olhos voltados mais para a efetividade da tutela, menos para classificações, nomenclaturas e listas.
Essas características ficam claras nas normas fundamentais do processo, especialmente de boa-fé, cooperação, duração razoável e efetividade (CPC, arts. 4º, 5º, 6º). Estão, ademais, alinhadas com as previsões que autorizam – e impõem – ao magistrado a ampla avaliação da regularidade dos pressupostos processuais (CPC, art. 485), a determinação do saneamento de “defeitos ou irregularidades” (CPC, art. 321), a prevenção e a repressão de qualquer ato contrário à dignidade da justiça (CPC, art. 139, III e IX).
É por isso, pelas características do regime processual brasileiro, que a tese proposta pelo ministro Moura Ribeiro é aquela que tem o real potencial de enfrentar o problema da litigância predatória.
A tese, ao reconhecer a possibilidade de o magistrado exigir a juntada de “documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas em juízo”, viabiliza o exame de adequação entre as circunstâncias do caso e as medidas necessárias para assegurar a regularidade do processo, exatamente conforme a sistemática adotada pelo nosso regime e levando em conta o cenário de diversidade e complexidade inerente à sociedade contemporânea.
O sistema de justiça precisa que o julgamento seja retomado no próximo dia 19, e que a Corte Especial enfrente o inevitável problema que está em suas mãos, pacificando entendimento que efetivamente assegure adequado acesso à justiça e beneficie toda a sociedade.
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[1] A litigância predatória, embora não seja de unívoca conceituação, é de fácil identificação. Embora haja muitas formas de abuso do direito de ação, essa modalidade usualmente envolve o ajuizamento centenas ou milhares de ações em um intervalo de tempo pequeno, em blocos, normalmente por grupos de advogados, com petições repetidas, genéricas, sem documentos mínimos. Diferentemente de ações repetitivas legítimas, essas ações predatórias são sabidamente infundadas, são distribuídas a partir de documentos falsos, repetidos, muitas vezes sem conhecimento pelo “cliente” que assina procurações genéricas. Esse contexto é fartamente comprovado em Notas Técnicas dos Centros de Inteligência dos Tribunais e foi documentado nos autos do Tema n. 1198, especialmente a partir das contribuições da audiência pública realizada em outubro de 2023. Ver, sobre o tema: https://www.jota.info/artigos/o-papel-do-stj-na-desjudicializacao-do-brasil; https://www.conjur.com.br/2023-out-31/opiniao-litigancia-predatoria-consome-25-bilhoes/.
[2] Do mesmo modo, são muito bem-vindas as iniciativas da OAB para reforçar medidas de fiscalização e de instituição de boas práticas de conscientização sobre litigância predatória, que igualmente complementam – não esgotam nem esvaziam – a atuação que é feita pelos magistrados quando do ajuizamento das demandas.
[3] Vale lembrar, ademais, que o REsp afetado no Tema 1198 foi oriundo de julgamento de IRDR (perante o TJMS), não sendo possível simplesmente “desafetar” a matéria, considerando o precedente já formado em âmbito estadual e a relevância da instância recursal para o microssistema dos repetitivos (como se vê do art. 987 do CPC).
[4] A tese do Min. Moura Ribeiro é no sentido de que: “o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, que a parte autora emende a petição inicial, apresentando documentos capazes de lastrear minimamente as pretensões deduzidas”.
[5] A tese parcialmente divergente, do Min. Humberto Martins, enuncia que: “o juiz, vislumbrando a ocorrência de litigância predatória, pode exigir, de modo fundamentado e com observância à razoabilidade do caso concreto, que a parte autora emende a petição inicial, apresentando documentos de identificação e/ou probatórios previstos na lei processual para lastrear minimamente as pretensões deduzidas, respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova”.
[6] Não há verdadeira diferença em relação à parte final da tese divergente proposta (“respeitadas as regras de distribuição do ônus da prova”), porque a tese proposta pelo Min. Relator não impede, de forma alguma, que incidam as regras legais de inversão do ônus da prova, que poderá ser determinada quando preenchidos os requisitos legais. A tese tal como sugerida apenas possibilita que o juiz exija, em uma fase inicial do processo, elementos mínimos, em prática que já foi referendada pelo STJ em diversas ocasiões, como nas ações de prestar e exigir contas (REsp nº. 1.231.027).
FONTE: JOTA – POR SOFIA TEMER