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A REFORMA TRIBUTÁRIA FORA DOS HOLOFOTES: NOVIDADES NO IPTU

18 de novembro de 2024

Quais são os impactos esperados na vida dos contribuintes?

O grande tema da reforma tributária é a introdução do IBS, de competência dos estados e dos municípios, e da CBS, de competência da União Federal, como substitutos do ICMS, ISS, PIS e Cofins. Ademais, muito tem sido discutido a respeito do novo Imposto Seletivo e da substancial alteração promovida na legislação do IPI. Contudo, é importante dar destaque às modificações que não vêm sendo examinadas com o mesmo entusiasmo, mas que trazem impactos significativos para o sistema tributário nacional e para a população brasileira.

A Emenda Constitucional nº 132/23 (EC 132/2023) trouxe importantes alterações nas esferas estadual e municipal, sobre as quais faremos pontuais considerações em uma série de artigos. Nesta primeira oportunidade, o objetivo é verificar as novidades constitucionais relativas ao imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU).

A grande novidade a respeito do IPTU é uma nova possibilidade de alteração da sua base de cálculo. Até a EC 132/2023, a majoração e a redução da base de cálculo do IPTU – ou qualquer outra alteração que acarretasse real aumento ou diminuição desse imposto – somente poderia ocorrer por meio de lei municipal. Agora, com a inserção do inciso III ao § 1º do artigo 156 da Constituição Federal, o Legislador Constitucional promoveu uma inovação no sistema tributário nacional que possibilita ao Poder Executivo Municipal “atualizar” a base de cálculo do IPTU, por meio de decreto, “conforme critérios estabelecidos em lei municipal”.

O primeiro ponto que chama atenção é a utilização do termo “atualizar” no dispositivo. Isso significa que o decreto do Prefeito, nos limites da lei municipal, poderá “recompor o valor da base de cálculo pela inflação”, ou significa que ele poderá “aumentar ou diminuir o valor real da base de cálculo em função das variações de mercado”?

Na primeira hipótese, a nova regra constitucional seria totalmente desnecessária, pois há muito está assentado na jurisprudência que não é majoração tributária a recomposição do valor da base de cálculo pelo percentual da inflação. Essa recomposição do valor conforme a inflação pode ocorrer por meio de decreto, tanto pelo que prescreve a Súmula 160 do STJ quanto pelo que dispõe o § 2º do artigo 97 do CTN.

Caso a interpretação devida seja a segunda hipótese, essa regra já era vislumbrada como implícita ao sistema por parte da doutrina[1], mas os Tribunais Superiores não a aplicavam[2]. Por isso, as entidades representativas dos prefeitos pressionaram politicamente o Senado Federal para que, em meio à reforma da tributação sobre o consumo, fossem previstas regras que permitiriam essa maior “autonomia” ao Poder Executivo Municipal de aumentar ou diminuir o valor da base de cálculo do IPTU em função das variações do mercado imobiliário[3]. Portanto, ao menos em uma interpretação histórica (mens legislatoris), esse parece ser o sentido do novo enunciado.

É relevante notar que o STF já aceitava, em alguns casos, a maior liberdade de atos normativos infralegais para definir critérios de majoração tributária, dentro de limites legais[4]. Esse fenômeno conhecido como “diálogo com o regulamento” ou como “legalidade suficiente” estava, entretanto, adstrito a contribuições e taxas, mas não a impostos. Ainda, essa técnica restringia-se a hipóteses de “subordinação, desenvolvimento e complementaridade” do diploma normativo legal, a fim de que a Administração Tributária conseguisse identificar particularidades de determinadas atividades para tributá-las de modo mais adequado.

Essa questão tem relevância, porque contribuições e taxas têm seu critério quantitativo e a sua arrecadação vinculados a uma finalidade específica, razão pela qual, nesses casos, importa analisar se está sendo promovida uma tributação suficiente para fazer frente à despesa pública. Era dentro desse contexto que a Administração Tributária poderia, nos limites da lei e seguindo critérios técnicos, “complementar” a disposição legal, mesmo que isso ensejasse aumento da tributação. Agora, com o advento da EC 132/2023, também há previsão constitucional de que um imposto poderá realizar um “diálogo com o regulamento”, mesmo que não haja uma atividade estatal específica para ser custeada (porque isso é da natureza dos impostos).

Ainda, tendo em conta que a alteração da base de cálculo do IPTU ocorrerá dentro dos parâmetros legais pré-fixados pelo Legislativo Municipal e, em todo caso, que a base de cálculo desse imposto é nacionalmente estipulada como o valor venal do imóvel (art. 33 do CTN), pode-se questionar qual seria a verdadeira intenção por detrás dessa nova regra constitucional. Afinal, de que adiantaria o Executivo ter mais liberdade para alterar a base de cálculo de imposto se esse montante é algo objetivo, ou seja, deve corresponder ao valor venal do imóvel e se isso, em tese, já deve ser observado pelas Câmaras de Vereadores?

A Frente Nacional de Prefeitos afirma que “a definição do valor venal dos imóveis não é uma decisão política e deve ser feita a partir de metodologias e critérios técnicos complexos, que são de competência do Executivo”. Há necessidade de engenheiros e auditores fiscais, permanentemente qualificados, além da adoção de cada vez mais recursos tecnológicos, para aferir a valorização dos imóveis no tempo. Se, por um lado, a definição da alíquota do IPTU continua sendo uma decisão política do Legislativo, como deve ser, por outro, o valor venal é uma atribuição eminentemente técnica. Assim, o cidadão continua podendo influenciar os vereadores e, no caso de discordância com a base de cálculo, poderá ingressar com recurso administrativo — e, em última instância, judicial. Garantir, na Reforma Tributária, a atualização do valor venal dos imóveis por decreto, como um ato técnico devidamente fundamentado, contribuirá para a justiça tributária, promovendo cidadania fiscal”[5].

Os contribuintes, por outro lado, temem que, na verdade, os Municípios possam promover aumentos no IPTU repentinos, fundados simplesmente numa maior arrecadação. Ainda, algo que reclama especial atenção é a potencial imediatidade da nova discricionariedade tributária por parte do Prefeito, pois cabe lembrar que a atualização da base de cálculo do IPTU apenas se submete ao princípio da anterioridade anual, mas não à anterioridade nonagesimal (art. 150, § 1º da CF). Assim, sem uma das anterioridades em seu favor e com o princípio da legalidade mitigado, os contribuintes estarão expostos, em todas as viradas de anos, a aumentos tributários.

Essa sucessiva mitigação do princípio da legalidade tributária é um dos temas que requerem atenção por parte dos especialistas em matéria tributária e de toda a sociedade civil, pois se está diante de novos contornos que flexibilizam as garantias constitucionais dos contribuintes. Toda essa discussão seria evitável se, simplesmente, fosse conferida máxima eficácia ao artigo 150, inciso I, da Constituição Federal (princípio da legalidade estrita). Todavia, o Poder Constituinte Derivado optou por promulgar um dispositivo ambíguo, com potencial para gerar ainda mais contencioso tributário[6], quando o exato oposto era um dos nortes da reforma promovida.

Considerações finais

Diante das considerações apresentadas neste breve artigo, evidencia-se que a reforma tributária reestrutura amplamente o sistema tributário nacional, ultrapassando o campo da tributação sobre o consumo. Por isso, não se pode perder de vista o estudo das alterações como um todo, a fim de verificar o verdadeiro impacto no âmbito do direito tributário e, sobretudo, na vida dos cidadãos.

Em termos de IPTU, destacam-se os novos contornos da legalidade tributária não apenas a esse tributo, mas potencialmente aos impostos de modo geral. Esse fenômeno reclama atenção, porque se está paulatinamente flexibilizando a principal garantia constitucional dos contribuintes, estampada como cláusula pétrea na Constituição Federal.

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[1] Ver, por exemplo, o artigo “A Base de Cálculo do IPTU e sua Fixação por Decretos”, de André Mendes Moreira. Disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2162 . Acesso em: 19 set. 2024.

[2] Ver, por exemplo, a própria súmula 160 do STJ e o Tema 211 do STF (RE 648.245/MG).

[3] Vide: https://www.jota.info/tributos/entenda-o-que-muda-no-iptu-com-a-reforma-tributaria. Acesso em: 19 set. 2024.

[4] O julgamento paradigmático a respeito do tema é o Recurso Extraordinário nº 838.284/SC (Tema 829 da Repercussão Geral), mas também cabe referir o Recurso Extraordinário nº 1.043.313/RS (Tema 939 da Repercussão Geral) e a Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 4.397/DF e 5277/DF.

[5] Trata-se de pronunciamento de Edvaldo Nogueira, Prefeito de Aracaju (PDT-SE) e presidente da Frente Nacional de Prefeitos (FNP). Disponível em: https://fnp.org.br/component/k2/item/3193-a-reforma-tributaria-deve-permitir-que-prefeitos-mudem-a-base-do-iptu-por-decreto-sim. Acesso em: 19 set. 2024.

[6] No mesmo sentido, ver o artigo “Aumento do IPTU por decreto”, de Kiyoshi Harada. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/403205/aumento-do-iptu-por-decreto. Acesso em: 19 set. 2024.

FONTE: JOTA – POR LORENZO DE CARPENA BARROS E LAURA MAURINA

 

 

 

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