Anteprojeto elaborado por grupo de 22 especialistas foi aprovado e será entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
Cada vez mais comuns na Justiça brasileira, os litígios estruturais – conflitos com impacto a um grupo de pessoas que podem resultar em novas políticas públicas – entraram no radar do Senado. O Poder Legislativo quer critérios objetivos de atuação do Judiciário nesse tipo de disputa, que pode envolver desde acidentes de trabalho e busca por vagas em creches até letalidade policial, combate a incêndios criminosos e melhorias tanto na vida da população carcerária quanto de pessoas em situação de rua e indígenas.
Mesmo com o crescimento dessas demandas no Judiciário, ainda não há regras específicas que instrumentalizem esse tipo de processo, até por ser um movimento relativamente novo no Brasil. No Supremo Tribunal Federal (STF), o primeiro caso considerado estrutural analisado foi o que discutiu a situação carcerária do país, no ano de 2015.
Na semana passada, o relatório final do anteprojeto sobre o assunto, elaborado por uma comissão de 22 juristas, foi aprovado. Ele deve ser entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), até o dia 12 de dezembro. O texto pode sofrer alterações no curso do processo legislativo. Representantes da comissão de juristas defendem que a lei não pretende regular a atuação do Supremo.
Um dos responsáveis pelo anteprojeto e relator da comissão no Senado é o desembargador federal Edilson Vitorelli – estudioso do assunto e com experiência em processos estruturais, como o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), onde atuou como procurador da República. O ex-procurador-geral da República, Augusto Aras, preside a comissão no Senado.
Os litígios estruturais vêm crescendo no Brasil na medida em que não há uma política pública ou privada estabelecida ou ela mostra-se ineficiente, segundo Vitorelli. Como são processos contínuos e com demandas que atingem distintos setores sociais, há críticas de políticos e especialistas de que o Judiciário estaria atuando fora de suas atribuições.
Outra corrente de especialistas defende que essa tendência de litígios estruturais ocorre em todo o mundo e é uma forma de evitar a litigância repetitiva. Inclusive, o termo “litígios estruturais” foi criado nos Estados Unidos, na década de 1950, após o caso Brown v. Board of Education, em que a Suprema Corte obrigou o fim da segregação racial nas escolas americanas.
O anteprojeto de lei do Senado define, por exemplo, o que são os problemas estruturais a serem enfrentados pelo Judiciário: “são aqueles que não permitem solução adequada pelas técnicas tradicionais do processo comum, individual ou coletivo”. Eles se caracterizam por elementos como complexidade, impacto social, intervenções duradouras e interferência no modo de atuação da instituição público ou privada.
O anteprojeto estabelece que o processo estrutural seja orientado pelo diálogo entre o juiz, as partes e demais interessados – entre eles os potenciais impactados pela decisão. O texto prevê a realização de consultas e audiências públicas e outras formas de participação direta e indireta no curso do processo.
O Supremo vem enfrentando a multiplicação dos processos estruturais na Corte, principalmente por meio de um tipo de ação chamado Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), na maioria das vezes, ajuizada por partidos políticos. As respostas que o STF vem dando a esses conflitos têm recebido críticas de especialistas e parlamentares sobre o excesso de intervenção do Judiciário.
São litígios em que o STF determinou a implantação de câmeras nas fardas de policiais do Rio de Janeiro; proibiu a remoção e o transporte compulsório de pessoas em situação de rua; mandou que o governo elaborasse planos de trabalho para combate a incêndios criminosos; melhorias na situação da população carcerária do país; e cuidados com a saúde da população indígena.
Embora o Supremo venha protagonizando esse tipo de litígio, em um primeiro momento, a atuação da Corte foi deixada de fora do projeto de lei do Senado. O foco está nas instâncias iniciais via ação civil pública. Assim, por enquanto, a proposta não “diminui” o poder do STF. No entanto, Vitorelli acredita que a lei possa ser usada como parâmetro.
“É uma lei que está pensando nas ações que tramitam em primeiro grau, não nas ações que tramitam no Supremo. Agora, há ações dessa natureza que também tramitam no Supremo, então é claro que uma vez que a lei exista e seja aprovada, ela eventualmente poderia servir de parâmetro para a atuação do Supremo. Mas ela não pretende regular a atuação do Supremo”, afirmou.
Na avaliação de Vitorelli, a lei pode, inclusive, impedir que ações estruturais cheguem ao STF. “Fato é que muitas dessas causas que estão no Supremo poderiam não estar. Estão no Supremo por acidente porque não são causas inerentemente da competência do Supremo.”
O jurista cita, por exemplo, a questão das queimadas, de relatoria do ministro Flávio Dino. “A ação só está no Supremo porque foi proposta uma ADPF. Mas não tem um lugar da Constituição que diga que queimadas são da competência do Supremo”, disse.
Sem regulamentação, segundo Vitorelli, não existem regras como quem classifica o processo como estrutural – o juiz, a parte ou terceiro interessado. “Quem pode ser convocado a participar da construção da resolução no Judiciário? E, principalmente, quando ele deve acabar, afinal, são problemas contínuos.” O desembargador cita o caso da ADPF sobre letalidade policial no Rio de Janeiro, em que ainda não está claro no STF quando o processo irá acabar e se vai persistir até o fim da violência policial.
Pelo anteprojeto, tanto o autor da ação quanto terceiros interessados ou mesmo o juiz podem indicar o caráter estrutural do processo. O texto também prevê a elaboração de planos com metas, indicadores e cronogramas com prazos razoáveis.
Ainda de acordo com o texto atual, o juiz não terá apenas o papel de julgar. Terá que articular soluções entre os envolvidos e elaborar um plano de trabalho para acompanhar o cumprimento da decisão. Ele poderá delegar funções decisórias e executivas para outras entidades. Por exemplo: no caso de uma infração em terra indígena, pode pedir que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) oriente a elaboração de um plano para corrigir o problema.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR FLÁVIA MAIA – DE BRASÍLIA