Pesquisa mostra maior volume de ações envolvendo questões ligadas à inteligência artificial.
O volume de ações trabalhistas envolvendo questões ligadas à automação e à inteligência artificial cresce ano a ano e uma nova tese ganha força na Justiça do Trabalho: a “subordinação algorítmica” – relação controlada pelo algoritmo do aplicativo. A discussão, que envolve vínculo de emprego com plataformas de prestação de serviços, divide, porém, o Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Pesquisa liderada pela advogada Leticia Ribeiro, do Trench Rossi Watanabe, com base em levantamento de dados da empresa de jurimetria Data Lawyer, mostra que o número de processos citando inteligência artificial vem crescendo consistentemente desde 2019. Naquele ano, havia apenas 218 ações, passando para 640 em 2020, 1.098 em 2021, 2.463 em 2022 e chegando a 4.531 em 2023.
Até junho deste ano, havia 2.715 processos. Se for mantido o ritmo atual, o número de reclamações trabalhistas ativas deve chegar a 5,5 mil – um aumento de 22% em relação ao ano passado.
Considerando apenas os processos ativos, o valor total das ações nos últimos 10 anos é de aproximadamente R$ 2,9 bilhões, o que equivale a uma média de R$ 252 mil por causa.
Chamou a atenção da especialista a prevalência da tese da “subordinação algorítmica”, que tem normalmente como partes as plataformas de transporte e entregas 99 Tecnologia, Uber, Rappi e iFood. Também se discute em ações envolvendo inteligência artificial, de acordo com o levantamento, dano moral por uso de dados sensíveis de empregados pelas empresas.
Com a subordinação algorítmica, alegam os trabalhadores, estariam sujeitos às ordens do algoritmo, com risco de sanção disciplinar e até expulsão da plataforma devido à falta de assiduidade de conexão ao aplicativo e das notas atribuídas pelos clientes.
Os trabalhadores argumentam ainda que não têm liberdade nem autonomia para definir os preços dos serviços prestados, nem possibilidade de escolha dos clientes. Para eles, haveria atividade de fiscalização, regulamentação e disciplina no trabalho por aplicativo.
No Tribunal Superior do Trabalho (TST), os colegiados se dividem sobre o tema. A 1ª, a 4ª e a 5ª Turmas não reconhecem o vínculo de emprego entre motoristas e aplicativos, mesmo explorando o conceito de subordinação algorítmica em suas decisões.
Em um dos precedentes da 4ª Turma, o relator, ministro Alexandre Luiz Ramos, afirmou que a tese da subordinação algorítmica “não é uma chave-mestra que abre as portas da CLT para todas as formas de trabalho por plataforma”. Segundo ele, todas as formas de plataforma estão sujeitas a algoritmos, mesmo as de música, relacionamento e entretenimento (RR 0000398-05.2023.5.21.0042).
Por outro, lado, a 2ª, a 3ª, a 6ª e a 8ª Turmas entendem que o modo de trabalho dos motoristas e entregadores obedece aos requisitos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para configuração de vínculo. A 7ª Turma não chegou a analisar o mérito da questão.
O ministro Maurício Godinho Delgado, em julgamento na 3ª Turma, ressaltou que a relativa liberdade do profissional para definir seus horários de trabalho e folga e o fato de ser o dono do meio de locomoção usado para fazer as entregas “são circunstâncias que não têm o condão de definir o trabalho como autônomo e afastar a configuração do vínculo de emprego” (RR 100353-02.2017.5.01.0066).
A palavra final, porém, segundo Rafael Caetano de Oliveira, sócio do Mattos Filho, caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros vão discutir a possibilidade de reconhecimento de vínculo dos aplicativos diante dos artigos 1º, inciso IV; 5º, incisos II e XIII, e 170, inciso IV, da Constituição. Ainda não há data marcada para o julgamento (Tema 1291).
“TST tem precedente sobre geolocalização para controlar a execução de tarefas” — Rafael de Oliveira
Para Leticia Ribeiro, para além da decisão do Supremo, é essencial a regulamentação da situação dos trabalhadores de aplicativos. “É preciso regulamentar, não só pela questão trabalhista, mas também pela previdenciária. Não acredito que se trate de uma relação de emprego típica, que tenha que ter todos os encargos, mas talvez seja uma nova figura”, diz.
Em nota, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), em nome de Uber, 99 e iFood, sustenta que os profissionais não têm vínculo com as empresas. As plataformas dizem que não usam elementos para obter subordinação algorítmica, “tese interpretativa sem respaldo na legislação”.
“As pessoas que se cadastram nos aplicativos são trabalhadores independentes que utilizam as plataformas para gerar ganhos financeiros com autonomia e flexibilidade. Escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens/entregas e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento”, diz a entidade. “Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens/entregas, não existe superior hierárquico nem encarregado de supervisão do serviço, não há obrigação de exclusividade, não existe controle ou determinação de cumprimento de jornada mínima.”
Também por meio de nota, a Rappi afirma que a 1ª Turma do STF já cassou acórdão da Justiça do Trabalho que tinha reconhecido a tese da subordinação algorítmica. “O número de reclamações tramitando no STF, inclusive, é decorrência da quantidade de ações que tramitam na Justiça trabalhista e que têm sido contestadas no Supremo por um entendimento constitucional. Estamos diante de um novo modo de organização da prestação de serviço e da tecnologia, trazendo particularidades a esse tipo de trabalho, de forma que a legislação atual ainda não contempla.”
Mas o impacto da tecnologia nas relações trabalhistas não se resume ao vínculo. Empregados têm processado as empresas por uso de dados considerados sensíveis para controle de jornada e do próprio trabalho, aponta o levantamento de Leticia Ribeiro.
Rafael Caetano de Oliveira destaca o tema do uso dos mecanismos de geolocalização dos celulares para controlar o cumprimento de tarefas por trabalhadores que prestam serviços externos. Segundo ele, a jurisprudência tende a admitir que o registro serve como meio de prova em processos, nos casos em que os celulares foram fornecidos pela própria empresa. No TST, há o precedente da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) no ROT 23218- 21.2023.5.04.0000.
Nem todos os assuntos têm contornos tão definidos. Stella Castro, advogada trabalhista do Demarest, aponta que outra possibilidade de dano moral, ainda sem jurisprudência consolidada no Judiciário, é o vazamento de informações de candidatos, que não chegaram a ser contratados pela empresa, mas cujos dados ficaram sob sua guarda.
“Informações obtidas durante as entrevistas também entram nessa categoria, e até mesmo dados a que a empresa teve acesso após a rescisão contratual devem entrar no radar das empresas como pontos de cuidado”, diz.
O tema com mais potencial para ser levado ao Judiciário nos próximos anos, segundo a análise de Patricia Peck, advogada especializada em Direito Digital, é o uso de dados pessoais dos funcionários para treinamento de sistemas de inteligência artificial. “É preciso se atentar às exigências de transparência e consentimento dos empregados, o que sempre esbarra em questões de privacidade e segurança no tratamento de dados”, afirma ela, acrescentando que esse tipo de proteção, por ora, acaba sendo mais bem regulada pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LUIZA CALEGARI — DE SÃO PAULO