A tributação é uma das ferramentas mais importantes à disposição dos governos para arrecadar recursos necessários à prestação de serviços públicos e à implementação de políticas sociais e econômicas. No entanto, a forma como os tributos são estruturados pode ter impactos significativos sobre o comportamento dos indivíduos e das empresas, bem como sobre a eficiência econômica.
Nesse contexto, o princípio da neutralidade na tributação emerge como um dos pilares fundamentais para a construção de um sistema tributário eficiente e justo.
A Emenda Constitucional nº 132/2023, que promulgou a reforma tributária no país, em seu artigo 156-A, §1º [1], determinou que IBS e a CBS, tributos que substituíram o ICMS, o ISS, a contribuição ao PIS e a Cofins, devem observar o princípio da neutralidade, que passou a integrar expressamente as limitações ao poder de tributar [2].
Este artigo mostra a importância desse princípio para o sistema tributário brasileiro e quais são os desafios e mudanças necessárias nos projetos de lei que regulamentam a reforma tributária, para que a sua implementação prática seja efetiva.
O princípio da neutralidade na tributação propõe que o sistema tributário deve interferir o mínimo possível nas decisões econômicas dos agentes, ou seja, os tributos não devem distorcer as escolhas de consumo, poupança, investimento ou produção, devendo criar um ambiente onde as decisões negociais sejam tomadas com base em considerações puramente econômicas e não em incentivos fiscais.
Em outras palavras, serviços e atividades econômicas similares devem ser tributados de forma equivalente, de modo a evitar a criação de vantagens ou desvantagens injustas entre diferentes setores ou tipos de atividades econômicas.
Desafios da reforma tributária
No entanto, embora a reforma tributária tenha internalizado o princípio da neutralidade, sua implementação prática enfrenta desafios que comprometem a sua efetivação, especialmente considerando que políticas tributárias muitas vezes são influenciadas por interesses políticos, sociais e econômicos que podem dificultar a adoção de um sistema completamente neutro e não-cumulativo.
O primeiro ponto de desafio é em relação aos artigos 31 e 32 do PLP nº 68 [3], aprovado pela Câmara dos Deputados, que impedem o aproveitamento de créditos nas operações imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero e anula o crédito das operações anteriores, o que compromete a neutralidade fiscal.
Isso porque, quando o aproveitamento de créditos é impedido, as empresas podem acabar acumulando créditos, não conseguindo utilizá-los para abater os débitos de suas operações, em clara violação ao princípio da não-cumulatividade plena, princípio este fundamental no regime do IBS e da CBS, onde o tributo é cobrado sobre o valor agregado em cada etapa da operação com bens e serviços.
Além disso, a anulação de créditos pode tornar as operações de determinadas empresas menos competitivas, especialmente em setores que operam com margens de lucro reduzidas. Isso porque as empresas que não conseguem utilizar seus créditos acumulados acabam com um custo tributário mais alto, o que pode impactar seus preços e competitividade no mercado.
Do mesmo modo, o artigo 28 do PLP nº 68 [4], ao condicionar os créditos dos contribuintes à efetiva comprovação do pagamento do tributo, também contraria a neutralidade, a não-cumulatividade e a simplicidade e favorece exclusivamente a fiscalização administrativa.
Neste caso, os contribuintes serão obrigados a verificar a regularidade fiscal de seus fornecedores para garantir que poderão utilizar os créditos fiscais, o que gera um novo elemento de risco e complexidade na gestão de negócios.
Ainda, tal condicionamento contraria o entendimento da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quando do julgamento do REsp nº 1.148.444/MG, submetido à sistemática dos recursos repetitivos, que decidiu no sentido de que:
“O comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja nota fiscal (emitida pela empresa vendedora) posteriormente seja declarada inidônea, pode engendrar o aproveitamento do crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, uma vez demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação.”
Substituição tributária incompatível
Ou seja, de acordo com o STJ, o adquirente de boa-fé tem o direito de se creditar do tributo oriundo de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, de modo que, da mesma forma, não poderia ser penalizado pelo não aproveitamento de crédito, em razão do tributo que deixou de ser recolhido pelo vendedor, sob pena de “quebrar” a cadeia de créditos e resultar na cumulatividade do tributo, eis que o tributo que deveria ser compensado acaba sendo incorporado ao custo final do produto.
Apesar de não estar previsto na regulamentação da reforma tributária, é importante mencionar desde logo que o regime da substituição tributária é incompatível com a neutralidade e não cumulatividade, além de não observar a tributação no destino, outro princípio instituído pela reforma.
O uso exacerbado do regime de substituição tributária (ST) pela legislação do ICMS acarretou um aumento de custo tributário para o contribuinte substituído, especialmente quando o tributo pago não é passível de creditamento.
Neste sentido, a impossibilidade de creditamento pode levar a um efeito cumulativo, onde o tributo incide de forma repetida ao longo da cadeia produtiva e de comercialização.
Em muitos casos, o contribuinte substituído (como o distribuidor ou varejista) não pode se creditar do tributo que foi recolhido pelo substituto tributário. Isso significa que o valor do tributo pago na origem não pode ser compensado com o tributo devido sobre as vendas futuras, o que gera um custo adicional, pois o valor do tributo é incorporado ao custo do produto.
Benefícios fiscais causariam distorções
Por fim, a concessão excessiva de benefícios fiscais pode contrariar a neutralidade, na medida em que pode distorcer as decisões econômicas, criar competitividade desigual, aumentar a complexidade do sistema tributário e introduzir incerteza e instabilidade.
Dessa forma, é preciso ter muita cautela na concessão desses benefícios fiscais, especialmente na redução de alíquota, considerando que há uma alíquota de referência, atualmente estimada em 26,5%, para que o IBS e a CBS mantenham a neutralidade. No entanto, quando concedidos muitos benefícios, tal fato pode impactar diretamente essa alíquota e, consequentemente, ocasionar a sua majoração.
Portanto, é crucial que o Poder Legislativo considere esses fatores ao desenhar e implementar as nuances da reforma tributária, buscando sempre equilibrar os objetivos de política econômica com a necessidade de um sistema tributário neutro e eficiente.
O princípio da neutralidade na tributação é essencial para a criação de um sistema tributário eficiente, justo e sustentável.
Ao minimizar as distorções nas decisões econômicas e promover a igualdade de tratamento, a neutralidade contribui para uma alocação eficiente de recursos e para o crescimento econômico sustentável.
No entanto, a implementação desse princípio deve ser equilibrada com outras considerações políticas e sociais, de modo a evitar os erros cometidos no passado em relação à cobrança do ICMS para, ao final, construir um sistema tributário que atenda às necessidades de toda a sociedade.
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[1] “Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
§1º O imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade e atenderá ao seguinte: (…).”
[2] Os professores Marco Aurélio Greco e Sérgio André Rocha sustentam que os “novos” princípios constitucionais tributários trazidos pela EC nº 132/03 já existiam tacitamente na Constituição Federal de 1988, mas agora existem de forma expressa no texto constitucional. Vide: GRECO, Marco Aurélio, & ROCHA, Sérgio André (2024). Vetores do Sistema Tributário Nacional após a EC n. 132. Revista Direito Tributário Atual, (56), 752–780. Disponível em: <https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2536/2288>. Acesso em: 01.08.2024
[3] “Art. 31. As operações imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero não permitirão a apropriação de crédito para utilização nas operações subsequentes, ressalvadas as hipóteses expressamente previstas nesta Lei Complementar.”
“Art. 32. A imunidade e a isenção acarretarão a anulação do crédito relativo às operações anteriores.”
[4] “Art. 28. O contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS poderá apropriar créditos desses tributos quando ocorrer o pagamento dos valores do IBS e da CBS incidentes sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou de serviço, excetuadas exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal e as demais hipóteses previstas nesta Lei Complementar.”
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR JANSSEN MURAYAMA E MARIANA VALENÇA