O Brasil vive um momento de transformação.
É hora de olhar para o Estado brasileiro com foco na sua eficiência, modernizar a administração pública, atualizar a gestão estatal para elevar a qualidade dos serviços e atender melhor às demandas da população. Apenas 31,8% dos brasileiros estão satisfeitos com os serviços administrativos, enquanto em países da OCDE esse número é de 63%, conforme relatórios e Dados Confiança Brasil, publicados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico em 2023.
Em um país com as proporções, diversidade e complexidade do Brasil, o desafio de viabilização de qualquer grande reforma está relacionado a forma de sua implementação. E isso depende dos marcos legais que a implementam. Os últimos anos trazem dois exemplos contrastantes.
A reforma tributária unificou diversos tributos nacionais, estaduais e municipais, possibilitando mais simplicidade e evitando a guerra fiscal. Já a reforma da previdência, se por um lado estabeleceu as mesmas regras para trabalhadores do setor privado, deu margem para que a União, os estados e os municípios regulamentassem seu próprio modelo dentro de regras gerais. Como resultado, a reforma andou menos no setor público, com estudos criticando que diversos estados e municípios aplicaram versões mais brandas ou até não tomaram nenhuma ação.
Para a reforma administrativa, é preciso entender primeiro como o tema é tratado. A Constituição de 1988 fez a opção por criar capítulo dedicado à administração pública brasileira. Seu conteúdo avança diretamente em algumas regras do serviço público. Ela trouxe uma série de imposições que lidam com problemas como o acúmulo de cargos, os concursos internos (provimento derivado) e o teto salarial (por vezes até hoje contornado). Mas também, de forma estrutural, universalizou o conceito de mérito para a base do serviço público brasileiro. O concurso público foi definido como regra de acesso para o corpo permanente, que também foi dotado de proteção contra desligamentos arbitrários.
Regulamento próprio de estados, municípios e União
De fato, o que se viu nas décadas subsequentes foi a consolidação dessas definições nos três níveis de governo. Segundo aponta o Atlas do Estado Brasileiro, em 2020, 86,95% do total de empregados vinculados ao Estado se enquadravam no vínculo estatutário. Contudo, se a natureza geral do emprego efetivo foi regulamentada, diversos temas foram deixados para gestão de cada ente.
São exemplos a parte disciplinar, os cargos de direção e assessoramento, o vínculo temporário e a própria organização das carreiras dos efetivos. Isso significa na prática que cada um da cadeia de União/estados/Distrito Federal/municípios necessitam estabelecer seus regramentos próprios.
Emergem desse cenário problemas que por vezes extrapolam a esfera do Executivo e suscitam a atuação judicial. Um exemplo é a regulamentação da contratação de temporários. Diversos municípios e até estados têm estabelecido desenhos precários para esse regime, sem previsão, por exemplo, de direitos trabalhistas básicos. Dessa forma, profissionais que sejam afetados por esses modelos têm buscado a esfera judicial.
Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Direito Público de 2021 encontrou 258 acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJ-ES) sobre o tema no período de um ano (1º de julho de 2019 até 1º de julho de 2020).
Além disso, esse cenário limita também a implementação de reformas que levem à modernização direta de toda a administração pública brasileira. Por exemplo, uma reforma por lei no Congresso que expanda o sistema de mérito para parcela dos cargos comissionados estará conscrita à força de trabalho da União. Hoje, o governo federal representa apenas 8,4% do total pessoal empregado pela administração pública brasileira (Ipea, 2023). A maior parte do serviço público, lotada nos municípios que representam 62,7% desse total, dependeriam de regulamentações próprias de cada uma das 5570 prefeituras.
Nesse aspecto, é importante recordar que a própria mudança trazida pela EC n° 19/1998 inovou ao prever que haveria lei complementar que regulamentaria a perda do cargo efetivo por desempenho insuficiente. Embora tal lei não tenha sido nem aprovada, caso isso seja feito, será garantido que toda administração pública brasileira terá um procedimento básico mínimo para esse fim. Deve-se avaliar também que essa legislação geral não impede regulamentos próprios dentro de seu contorno. Um exemplo é que o próprio governo de Minas Gerais, na ausência da lei complementar, criou seu próprio regramento para o tema.
Debate de emenda constitucional
Nesse contexto, por qual caminho seguir? Como garantir que um agenda nacional sobre reforma administrativa seja implementada por estados e municípios?
O mais evidente, adotado pelas reformas da previdência e tributária, é a discussão de uma emenda constitucional. A própria PEC 32/20 elucidou esse caminho. Embora não tenha sido apresentada com esse desenho, o relatório aprovado na comissão especial na Câmara dos Deputados tratou diretamente da preocupação sobre regulamentação.
Seu texto propôs, como já existem normais gerais para licitação, regramentos nacionais sobre temporários, comissionados, desligamento por desempenho, sistema de carreiras, dentre outros. Mais ainda, até que essas leis fossem aprovadas, seus dispositivos avançaram em regras objetivas de aplicação imediata que já trariam ganhos para os temas de temporários e desempenho.
Outra perspectiva, em muito advinda da oposição que existe quanto à discussão de uma PEC, é a de que leis, com abrangência nacional, isto é, vinculando União, estados e municípios, seriam suficientes pra o enfrentamento do tema. Esse caminho apresenta riscos inerentes, dado que a Constituição, ao direcionar autonomia federativa no assunto, pode levar à interpretação de sua vedação. Desafio que a recente promulgada Lei de normais gerais de concursos públicos (Lei 14.965/2024) enfrentou, equilibrando-se em disciplina menos impositiva.
Soma-se também que nessa opção existem temas cuja apresentação de projeto de lei é de prerrogativa do Executivo, com limites não tão claros. Ou seja, uma maior efetividade da reforma administrativa por leis de cobertura nacional passa, antes de tudo, por intenso trabalho de elucidação jurídica.
Nesse cenário, é evidente a necessidade de não temer o debate constitucional em torno da reforma administrativa. Estabelecer normas gerais para a gestão de pessoal, seja pela PEC 32 ou outra que venha a ser apresentada, é fundamental para a garantia de mudança efetiva em todo o país.
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR FLÁVIO HENRIQUE UNES PEREIRA E FELIPE DRUMOND