A hipertrofia que parece se estar querendo implementar ao Poder Executivo
O PLP 108/2024, recém-aprovado na Câmara dos Deputados e agora em tramitação no Senado, parece não estar sendo debatido com a profundidade que se exigiria em se tratando de proposta que versa sobre aspectos cruciais da reforma tributária.
Conforme se sabe, referido projeto visa, dentre outros pontos, regular o procedimento administrativo fiscal (PAF) do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Além disso, contém enunciados no intuito de regrar o processo de harmonização da jurisprudência administrativa a ser criada relativamente ao contencioso do IBS e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Ocorre, porém, que há, pelos menos, dois pontos no referido projeto que exigem muita atenção. Mais do que isso, esses pontos impõem o urgente aprofundamento do debate para mudança da sua redação. Isso porque, ao que tudo indica, se aprovados como estão redigidos até aqui, implicarão inconstitucionalidades evidentes, conforme se passa a demonstrar.
O primeiro ponto diz respeito ao que dispõe o art. 84, § 3.º do PLP 108, aplicável ao PAF do IBS. Segundo estabelece referido enunciado, a autoridade lançadora poderá alterar o lançamento efetuado depois de o sujeito passivo da obrigação tributária apresentar impugnação. Isso “no todo ou em parte” e “diante de necessidade de sua reformulação”.
Tal dispositivo prevê exatamente isso que se lê. Ou seja, a administração tributária poderá tomar ciência da impugnação e, ato contínuo, refazer integralmente o auto de lançamento, se assim entender “necessário”. Tudo na mais ampla e irrestrita discricionariedade.
Ora, como logo se vê, essa previsão normativa não passa pelo teste de constitucionalidade. Isso porque ela viola o disposto no art. 146, III, “b” da CF/88, que reserva à lei complementar geral o papel de dispor sobre obrigação tributária e lançamento. Referida lei complementar geral, como há muito se sabe, é o Código Tributário Nacional (CTN).
Este, por sua vez, estabelece, no art. 146, que modificações de ofício quanto aos critérios jurídicos adotados pela autoridade lançadora com relação a certo lançamento só podem ser aplicadas, referentemente a um mesmo sujeito passivo, quanto a fatos geradores futuros à introdução deste novo critério. Trata-se de enunciado que visa a preservar a estabilidade do Direito e a confiabilidade neste. Quer-se, com ele, promover segurança jurídica nas relações entre poder público e particular.
Sendo assim, a disposição do art. 84, § 3.º, do PLP 108, esbarra na força normativa deste dispositivo no CTN, o qual está, como se disse, baseado na reserva material de competência fixada pela CF/88.
É evidente que se a autoridade lançadora pretender, por exemplo, requalificar juridicamente certo bem para entender que este se enquadra como de uso e consumo pessoal e, consequentemente, para vedar a tomada de crédito de IBS, então essa requalificação jurídica não poderá ser feita com relação ao lançamento já lavrado e impugnado.
A norma jurídica baseada no art. 146 do CTN proíbe tal requalificação quanto ao crédito tributário já constituído. Em face disso, não seria válido o enunciado do art. 84, § 3.º, por dispor contrariamente à regra geral estabelecida pelo CTN.
E não se diga, nesse aspecto, que o PLP 108, por objetivar a produção de lei de natureza complementar, poderia inserir tal enunciado normativo no sistema tributário, com base no art. 146, III, da CF. Não pode. É que o projeto em exame não produzirá lei complementar “geral”. Ele pretende instituir lei complementar “especial”, tendente a regular um tributo especificamente considerado.
Daí porque não ser juridicamente possível, por meio de disposição especial referente a certo imposto, se querer alterar regra que é geral, aplicável a todos os tributos, inclusive ao IBS.
Por isso é que se sugere, aqui, a modificação do texto do projeto neste ponto. Isso para que o § 3.º do art. 84 faça menção expressa ao limite de modificação estabelecido pelo art. 146 do CTN.
O segundo ponto diz respeito ao enunciado do art. 92, § 3.º do PLP 108. Este dispositivo estabelece algo muito grave. Ele proíbe que as autoridades julgadoras, no âmbito do PAF do IBS, deixem de aplicar ato normativo do poder Executivo (Decreto, instrução normativa, portaria etc.) ou afastem a aplicação deste sob o fundamento de ilegalidade.
Ou seja, se, por exemplo, certa instrução normativa for ilegal, ainda assim ela deverá ser aplicada pelos julgadores. Em outras palavras: a ilegalidade do comportamento do administrador tributário, se aprovada essa disposição ora examinada, não poderia mais ser afastada pelo órgão de jurisdição administrativa.
Como facilmente se percebe, esse enunciado do projeto afronta de maneira até, vale dizer, “ingênua” a CF/88. Ele viola claramente as garantias estabelecidas, de um lado, pelo art. 5.º, LIV e, de outro lado, pelo art. 37, caput, da CF/88. A primeira diz respeito ao devido processo. De acordo com ela, ninguém será privado dos seus bens sem a observância ao que a lei em sentido formal estabeleceu como devido processo procedimental. A segunda se refere ao princípio da legalidade. Trata-se de norma jurídica que configura, não é exagero dizer, a base da atuação da administração pública, em geral, e da administração tributária, em particular.
Sabe-se, há muito, que o administrador tem o dever-poder de agir nos limites estritos da lei. Nesse sentido é que, inclusive, os atos do Poder Executivo devem promover a fiel execução da lei, tal como estabelece o art. 84, IV, da CF/88. E o papel da jurisdição administrativa tributária é fazer exatamente o controle de legalidade da atuação da autoridade lançadora. Esse é, em essência, o conteúdo da competência do julgador administrativo, sobretudo no campo do Direito Tributário, em que a legalidade é reforçada, de tal modo que o tributo só pode ser criado e cobrado nos exatos limites daquilo que a lei estabelecer.
Em face de tudo isso, tal disposição do projeto não seria válida. Se aprovada, ela praticamente esvaziaria o papel da autoridade julgadora no âmbito da jurisdição administrativa, razão pela qual deve haver urgentemente a modificação em seu texto. Isso para que a menção à “ilegalidade” seja suprimida.
A essa altura do presente artigo, uma indagação tende a se fazer relevante: o que esses dois problemas na redação do PLP 108 podem estar evidenciando? A resposta para essa pergunta parece, de certa forma, evidente. O que os pontos acima examinados parecem ter em comum é a hipertrofia que parece se estar querendo implementar ao Poder Executivo.
No pano de fundo dessas questões o que há é o super reforço do poder da administração tributária para mudar livre e ilimitadamente o lançamento (ponto 1) e agir em desconformidade com a lei sem que a justiça administrativa possa corrigir a ilegalidade (ponto 2). Tudo mediante o correspondente enfraquecimento de garantias como segurança jurídica e legalidade. Ou seja, são pontos muito preocupantes.
Urge, sendo tudo isso verdadeiro, revisar tais partes do projeto ora examinado. Impõe-se um diálogo mais profundo quanto a elas, sob pena de, se assim não for, estarmos, lamentavelmente, promovendo um estado de coisas que definitivamente não combina com os desejos mais sinceros de que a reforma tributária possa efetivamente pacificar e simplificar as relações jurídicas entre poder público e particular e trazer mais segurança jurídica para o exercício planejado da liberdade econômica.
FONTE: JOTA – POR CASSIANO MENKE