Nosso legislador ainda tem tempo de acertar o rumo para não alimentarmos mais o contencioso
O Brasil está prestes a dar um salto grande na área tributária, a reforma da tributação sobre o consumo, passando de um sistema totalmente disfuncional para uma nova realidade testada há décadas no mundo. Funciona? Sim. Vai melhorar? Vai. Teremos problemas? Sim, menos, mas teremos.
A regulamentação da reforma tributária foi aprovada na Câmara dos Deputados no último dia 10 de julho, com muita comemoração de um lado, mas preocupação de outro. A esmagadora maioria das pessoas, incluindo os parlamentares, não se atentou sobre o pilar central do novo modelo e o que isso representará: o Princípio da Neutralidade.
O Princípio da Neutralidade como utilizado em países que adotam o IVA é novidade no Brasil. O que temos aqui até agora é uma tentativa bem parcial, incompetente e turva de dar neutralidade fiscal às cadeias econômicas.
Este princípio, que foi materializado pela Emenda Constitucional 132, no Art. 156-A, § 1º (“o imposto previsto no caput será informado pelo princípio da neutralidade”), pressupõe que o IBS e a CBS obedeçam a essência de um IVA, que é onerar apenas a operação para consumo (B to C), eliminando detritos fiscais dentro da cadeia econômica e, principalmente, que esses tributos não influenciem injustificadamente as decisões econômicas dos agentes e as decisões de consumo.
Portanto: as cadeias econômicas não podem ser oneradas, mas apenas a operação final para consumo; e bens e serviços similares não podem ser tributados de maneira diferente. Isso é base fundamental do IVA, que consta nas diretivas da OCDE, da União Europeia, nas legislações dos demais países que adotam o IVA, sejam os mais modernos ou mais tradicionais, chancelada pelos Tribunais mundo afora e, agora, também incorporada na legislação do IBS e da CBS.
A Emenda Constitucional não permitiu qualquer limitação desse princípio pelo legislador infraconstitucional, a não ser naquelas circunstâncias específicas, como no Art. 9º, que prevê a possibilidade de redução de alíquota para alguns grupos de bens e serviços (e.g. educação, saúde, medicamentos, alimentos etc.). Portanto, a diferença de tributação somente pode existir na exata medida do que a Constituição permitiu: entre bens e serviços distintos – setores distintos –, nunca entre bens e serviços similares.
Esta regulamentação não é livre, portanto, ela precisa seguir os princípios constitucionais, começando pela neutralidade e, por conseguinte, livre concorrência, isonomia, dentre outros.
Aqui mora o grande problema: tanto a sociedade quanto o legislador não se atentaram ainda para o que significa o Princípio da Neutralidade e como ele deve guiar tanto o processo legislativo quanto o de aplicação da norma. Estamos ainda embebidos no veneno dos ICMSs e IPIs que em nada se assemelham ao novo sistema que estamos adotando.
O PLP 68/2024 que saiu do governo federal e o texto que foi votado e aprovado na Câmara ferem este princípio em diversos momentos, basta passar pelo texto ou listas ali constantes.
Este problema de neutralidade não existe somente aqui. A cada 1.000 processos decididos pela Corte Europeia sobre IVA, 492 referem-se a casos de neutralidade. O ponto é que ainda há tempo para melhorar nossa situação, pois o PLP 68 ainda tramita no Congresso.
Um bom exemplo de quebra de neutralidade está nas listas de redução de alíquota. Não questiono o que está dentro, mas o que está fora, pois ao se colocar algum produto em uma lista, temos que justificar a razão de um outro similar não estar.
Um caso concreto: se os leites de origem animal estão na Cesta Básica, o que achamos correto pois respeita as premissas colocadas na Emenda Constitucional, não há justificativa para se deixar de fora, contudo, os alimentos líquidos de base vegetal: mesmo propósito, apresentação comercial similar, composição nutricional similar, oferta de venda similar (mesma gôndola em supermercado), mesma aparência física. Se uma a cada duas pessoas tem alguma intolerância à lactose e não pode tomar o leite animal, onerar aquele que não pode tomar a uma carga de 26,5%, fere qualquer noção de neutralidade.
É característica basilar do Princípio da Neutralidade que o IBS e a CBS não tratem tributariamente de maneira distinta: fornecimento de bens e serviços similares e atividades econômicas similares, que competem entre si ou estão em situações similares. No exemplo acima e em tantos outros isso ocorrerá.
Ter um novo sistema tributário também significa ter uma nova atitude, abandonando o pensamento arcaico anterior. Nosso legislador ainda tem tempo de acertar o rumo da espaçonave, para não continuarmos de carruagem e alimentarmos mais o contencioso.
FONTE: JOTA – POR PAULO DUARTE FILHO