É a primeira vez que uma das turmas de direito privado se pronuncia especificamente sobre o assunto, segundo especialistas.
Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que não se aplica o Código de Processo Civil (CPC) na arbitragem. Por unanimidade, os ministros da 3ª Turma afastaram a nulidade de uma sentença arbitral por entenderem que eventuais lacunas no processo só podem ser supridas com as normas do CPC se a medida for acordada previamente entre as partes.
É a primeira vez, segundo especialistas, que uma das turmas de direito privado do STJ se pronuncia especificamente a respeito da aplicação subsidiária do CPC (Lei nº 13.105, de 2015). A decisão, dizem, é um importante precedente contra pedidos de anulação de arbitragens.
Com o julgamento, ficou mantida a participação de um preposto de uma das partes – no caso, um representante de uma das empresas – como tradutor. Conforme os autos, a prática teria sido admitida pelo árbitro, em diálogo com as partes, assegurando que qualquer divergência sobre a tradução poderia ser questionada dentro do próprio procedimento arbitral. Já com base no Código de Processo Civil, o tradutor deveria ser um terceiro sem relação com as partes.
Durante a arbitragem, uma das partes julgou necessário chamar um tradutor de mandarim para que pudessem ser apresentadas duas testemunhas chinesas, que não falam português. A parte que as intimou, a Citic Construções, ficou responsável por traduzir, às próprias custas, os documentos apresentados e os depoimentos prestados em audiência. Para isso, convocou um de seus funcionários.
A Usimec Soluções em Engenharia, a parte contrária, questionou o procedimento. Alegou violação aos artigos 134, 135 e 138 do Código de Processo Civil, e teve seu pedido atendido tanto em primeira instância, na 1ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, quanto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS).
No STJ, porém, prevaleceu o voto do relator, ministro Marco Aurélio Bellizze. De acordo com ele, o procedimento arbitral é regido “pelas convenções estabelecidas entre as partes litigantes – o que se dá tanto por ocasião do compromisso arbitral ou da assinatura do termo de arbitragem, como no curso do processo arbitral -, pelo regulamento do tribunal arbitral eleito e pelas determinações exaradas pelo árbitro”.
Sem uma combinação prévia para uso das regras do CPC em caso de falta de previsão contratual, afirma ele no voto, “não se me afigura possível impor às partes a incidência de tais regramentos, ainda que para suprir uma lacuna no regulamento, em contrariedade à manifestação de vontade por ele expendidas” (REsp 1851324).
Ele acrescenta que a mera estipulação conjunta das partes de que “o árbitro deverá decidir o mérito da controvérsia com base no direito brasileiro” não significa que o CPC deve ser aplicado subsidiariamente.
“É um daqueles julgados que são mais do que jurisprudência” — Selma Lemes
Para ele, a atuação de um preposto de uma das partes como tradutor não comprometeu o devido processo legal nem “qualquer outro princípio basilar do processo”. Não seria possível, diz, considerar a tradução “tendenciosa” ou divergente do que foi efetivamente dito pelas testemunhas.
O advogado Guilherme Rizzo Amaral, do escritório Souto Corrêa, que representou a parte vencedora, considera a decisão do STJ “paradigmática”. “O STJ reafirma a arbitragem como um procedimento no qual impera a flexibilidade e a autonomia da vontade das partes, não se aplicando as regras rígidas do Código de Processo Civil”, afirma.
Além disso, diz, reconhece que a sentença arbitral não pode ser derrubada por meio da chamada “nulidade de algibeira” – reclamação que a parte deixa para apresentar quando entender ser mais conveniente, para tentar anular, por exemplo, uma sentença desfavorável. “O precedente soma-se a vários outros que têm demonstrado o total apoio do Judiciário brasileiro ao instituto da arbitragem”, afirma o advogado.
A 3ª Turma do STJ, como destaca o ministro em seu voto, já tinha decidido que o procedimento arbitral deve correr de acordo com o que foi combinado entre as partes (REsp 1903359), e que o controle judicial da sentença arbitral deve se ater apenas aos aspectos de ordem formal, conforme o disposto no artigo 32 da Lei nº 9.307, de 1996 (REsp 1636102). Nessa decisão mais recente, porém, é a primeira vez que o colegiado se pronuncia especificamente sobre a aplicação do CPC.
Selma Lemes, advogada e professora especialista em arbitragem, elogiou a decisão do STJ. “É um daqueles julgados que são mais do que jurisprudência, pela qualidade e conteúdo científico. É doutrina em forma de jurisprudência”, diz. “Esclarece que arbitragem e processo civil são sistemas diferentes. O consensualismo na arbitragem se sobrepõe ao formalismo do Código de Processo Civil”, acrescenta.
Para Gabriel de Britto Silva, advogado, árbitro e integrante da Comissão de Arbitragem da seccional fluminense da Ordem doa Advogados do Brasil (OAB-RJ), o julgamento foi “exemplar e histórico”. “A autonomia da vontade das partes é princípio basilar da arbitragem, de modo que a liberdade e flexibilidade das partes em convencionarem sobre a forma de produção da prova é ampla.” No procedimento arbitral, completa, “quaisquer lacunas para além da lei de arbitragem, da cláusula, do regulamento da câmara e do termo de arbitragem, são supridas pelo árbitro ou pelo tribunal arbitral”.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LUIZA CALEGARI — DE SÃO PAULO