Ao impor limites claros para o uso da ação popular contra decisões do Carf, o STJ reafirma os princípios que devem guiar a administração pública em todas as suas ações.
A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial 1608161/RS, que limitou o cabimento de ações populares contra decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), marca um momento significativo para o direito administrativo e tributário no Brasil. Ao definir que a ação popular só deve ser admitida em casos de ilegalidade manifesta, abuso de poder ou contrariedade à jurisprudência consolidada, o STJ reforça a necessidade de respeitar as decisões do Carf, protegendo a integridade do processo administrativo e os princípios fundamentais que norteiam a administração pública.
O Carf desempenha um papel crucial na resolução de litígios tributários, sendo responsável por decisões que envolvem uma análise técnica profunda e uma interpretação precisa da legislação tributária. Suas decisões, que frequentemente envolvem questões de alta complexidade, devem ser respeitadas como definitivas na esfera administrativa. Contudo, a tentativa da Fazenda Nacional de anular suas decisões, por meio de ação popular ajuizada por um auditor fiscal, levanta preocupações significativas sobre a aplicação dos princípios da moralidade, legalidade e eficiência na atuação do Estado.
O fato de o autor da ação popular ser um auditor fiscal traz à tona questões sobre a finalidade e a moralidade desse tipo de iniciativa, uma vez que desvirtua o uso para o qual esse tipo de ação foi instituída já na Constituição de 1934, qual seja, o de servir como instrumento de participação democrática que permitia ao cidadão defender o patrimônio público, a moralidade administrativa, o meio ambiente, e o patrimônio histórico e cultural contra atos lesivos. Assim, quando utilizada por agentes públicos em contextos que podem sugerir a existência de interesse pessoal ou institucional, há o risco de desvirtuamento de seu propósito original. O uso da ação popular como ferramenta para contestar decisões previamente analisadas e julgadas por instâncias competentes, como o Carf, coloca também em risco o princípio da legalidade, uma vez que desafia a autoridade de decisões que já passaram por um crivo técnico especializado.
Além disso, a iniciativa da Fazenda Nacional de apoiar o autor da ação proposta contraria o princípio da eficiência, previsto no artigo 37 da Constituição Federal, que exige da administração pública uma atuação coordenada e objetiva, evitando o desperdício de recursos e a perpetuação de litígios desnecessários. A eficiência administrativa pressupõe que os órgãos públicos atuem de maneira integrada e que as decisões sejam implementadas de forma célere e eficaz, sem a interferência indevida de novas disputas que prolongam o processo e aumentam os custos para todas as partes envolvidas.
Nesse contexto, a crítica do ministro Paulo Sérgio Domingues à postura da Fazenda Nacional é extremamente relevante.
Ao questionar a decisão de apoiar uma ação popular que visa anular uma decisão do Carf, o ministro não apenas aponta para uma possível incoerência na atuação da administração pública, mas também ressalta a importância de que os princípios da moralidade e legalidade sejam rigorosamente observados. O papel de um auditor fiscal deve ser o de garantir que a legalidade prevaleça, sem o uso de instrumentos Anielle Franco já comentava com ministros sobre assédio de Silvio Almeida, dizem fontes processuais para reabrir discussões que já foram exaustivamente analisadas por instâncias competentes.
Outro ponto que merece destaque é o impacto que ações como essa podem ter sobre a percepção pública da administração tributária. O uso da ação popular, quando motivado por razões que extrapolam a defesa do interesse público, pode ser visto como um desvio de finalidade, comprometendo a imagem da administração pública perante os contribuintes e a sociedade. A confiança no sistema tributário depende da percepção de que as decisões são tomadas de maneira justa e objetiva, respeitando princípios basilares de direito administrativo.
Ainda mais grave é o fato de que a postura da Fazenda Nacional, ao apoiar a anulação de uma decisão do Carf, contraria o princípio da vedação ao venire contra factum proprium. Esse princípio impede que a administração pública adote comportamentos contraditórios, violando a boa-fé e a legítima expectativa dos cidadãos. Quando a administração pública age de maneira incoerente, como ao tentar anular uma decisão que ela mesma produziu, fica comprometida a credibilidade do Estado e a previsibilidade do sistema jurídico, gerando insegurança e incerteza.
Em última análise, a decisão do STJ fortalece a confiança nas instituições públicas e no sistema tributário como um todo. Ao proteger as decisões do Carf contra revisões indevidas, o tribunal contribui para a manutenção da ordem e da justiça no processo administrativo. Essa decisão é um passo importante para garantir que o sistema tributário brasileiro continue a evoluir de forma justa e eficiente, assegurando que as decisões administrativas sejam tratadas com o devido respeito e que os princípios da legalidade, moralidade e eficiência sejam rigorosamente observados.
Em conclusão, ao impor limites claros para o uso da ação popular contra decisões do Carf, o STJ não só protege a integridade do processo administrativo, mas também reafirma os princípios que devem guiar a administração pública em todas as suas ações. A decisão contribui para a construção de um sistema jurídico mais estável e confiável, onde as decisões são respeitadas e as instituições agem de forma coordenada e eficiente, garantindo a segurança jurídica e a justiça para todos os cidadãos.
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR JOSÉ ANDRÉS LOPES DA COSTA