Ainda é possível a suspensão da ação penal por crime tributário em razão do parcelamento da dívida, mesmo que já recebida a denúncia, se a ação/omissão tomada por criminosa for anterior ao dia 1º de março de 2011.
O legislador claramente optou, nos crimes tributários, por adotar uma política criminal que prioriza a recuperação do crédito tributário, em detrimento de uma visão meramente punitivista. É nesse contexto que se inserem a extinção da punibilidade do acusado pelo pagamento integral da dívida fiscal (artigo 69, Lei nº 11.941/2009) e a suspensão da ação penal pelo parcelamento do tributo (artigo 83 da Lei nº 9.430/96).
Nas últimas décadas, contudo, o tema da suspensão da ação penal diante do parcelamento da dívida sofreu repetidas alterações: (1) na sua redação original, a Lei nº 9.430/96 não dispunha sobre a suspensão da ação penal pelo parcelamento da dívida; (2) em 2000, foi editada a Lei nº 9.964 que previa que a ação deveria ser suspensa pela inclusão da dívida em programa de parcelamento, “desde que a inclusão no referido programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal” (artigo 15); (3) em 2003, foi publicada a Lei nº 10.604, que excluiu a limitação da suspensão antes do recebimento da denúncia (artigo 9º); (4) em 2009, a Lei nº 11.941 alterou novamente a disciplina da matéria, mas, no ponto que nos interessa, também não exigia que o parcelamento fosse feito antes do recebimento da denúncia (artigo 68); (5) em 2011, porém, a Lei nº 12.382 reinseriu (na Lei nº 9.430, artigo 83, parágrafo 2º) a limitação de que a ação penal é suspensa “desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal”.
Essa é a norma vigente hoje: em regra, o parcelamento da dívida fiscal só suspende a ação penal se feito antes do recebimento da denúncia – que é o documento em que o Ministério Público formaliza a acusação criminal, a ser recebida pelo juiz. Dessa elevada quantidade de alterações – criticável por si só, pois o tema tem natureza penal, que demanda especialmente a segurança jurídica -, surgiram problemas e controvérsias sobre a determinação da legislação aplicável em cada caso.
A primeira premissa era evidente e foi corretamente fixada: a lei editada depois do crime não retroage se for mais gravosa ao processado e, de outro lado, deve retroagir se mais benéfica, como prevê o artigo 2º do Código Penal. O STJ decidiu isso no REsp 1493306.
O problema surgiu na segunda premissa: qual a data considerada para verificar a legislação aplicável? Embora na maioria dos crimes isso não seja um problema, nos delitos tributários há uma particularidade: ele apenas se consuma depois do lançamento definitivo do crédito tributário pelo órgão fiscal competente (Súmula Vinculante nº 24/STF).
Assim, o processo de ocorrência do delito tributário se estende por anos, afinal, mesmo que iniciado hoje o crime, ele apenas se consumaria depois do procedimento fiscal que constitui o crédito tributário, o que pode demorar mais de uma década.
O STJ tem entendido que “a incidência ou não da modificação operada pela Lei nº 12.382/2011 – que é mais gravosa e não pode retroagir para alcançar casos anteriores a sua entrada em vigor – deve ser aferida pela data da constituição do crédito tributário e não pelos anos em que supostamente não houve o pagamento do tributo devido, na esteira da Súmula Vinculante nº 24 do STF” (AgRg no RMS nº 62.925, DJe 16.12.22).
Há vários outros julgados em igual sentido, de ambas as turmas. O entendimento, contudo, está equivocado: a data do lançamento do crédito tributário não pode ser o critério que define a legislação aplicável, porque essa é a data da consumação do crime, não o tempo do crime.
O nosso Código Penal fixa que “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”. Ou seja, o tempo do crime, que determina a legislação aplicável, é aquele da ação ou da omissão (data da fraude), “ainda que seja outro o momento do resultado” (data do lançamento do crédito tributário).
Daí, basta ver que, justamente pela demora no lançamento, não é raro ver ações penais ainda em curso cuja ação/omissão incriminada ocorreu antes de 2011, antes da limitação da suspensão pelo recebimento da denúncia.
Nesses casos, há que se reconhecer que a legislação aplicável no tempo do crime permitia a suspensão da ação penal pelo parcelamento da dívida fiscal mesmo que já recebida a denúncia: ainda que o parcelamento fosse feito hoje, seria cabível a suspensão.
Essa é a solução correta tecnicamente, incentiva o parcelamento e o pagamento de dívidas fiscais e cumpre a política-criminal que prioriza a recuperação do crédito tributário em detrimento de uma visão meramente punitivista.
A boa notícia é que há espaço para convencimento. O nosso escritório conseguiu suspender duas ações penais com base nesse argumento, uma delas inclusive em habeas corpus no TRF-3, formando precedente em que a questão foi perfeitamente compreendida: o tribunal fixou que “nos crimes cometidos até a publicação da referida lei, terá o acusado direito à suspensão do andamento do feito, caso concedido o parcelamento, independentemente de ter havido ou não o recebimento da denúncia na ação penal, assim como será declarada extinta a sua punibilidade caso efetue o pagamento integral do tributo, ocorrendo este antes ou depois do recebimento da peça inicial acusatória”.
Portanto, ainda é possível a suspensão da ação penal por crime tributário em razão do parcelamento da dívida, mesmo que já recebida a denúncia, nos casos em que a ação/omissão tomada por criminosa seja anterior ao dia 1º de março de 2011, data em que a Lei nº 12.382 passou a vigorar.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR LUIZA OLIVER E NEULER MENDES JR.