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INCONSTITUCIONALIDADE DO ITCMD NA REFORMA TRIBUTÁRIA

15 de agosto de 2024

A lei tributária não pode qualificar a distribuição desproporcional de lucros como doação

Em artigos neste espaço, além de algumas apresentações no ambiente acadêmico e profissional, tenho dito que estou entre a minoria dos tributaristas que defendem a reforma tributária. No entanto, com a redação e a discussão dos textos legais, algumas surpresas aparecem que questionam a credibilidade dessa significativa mudança no sistema tributário brasileiro.

Uma das últimas surpresas que tem merecido atenção é a previsão da distribuição desproporcional de lucros (dividendos) como fato gerador do imposto sobre doações, o ITCMD. Flagrantemente inconstitucional, essa medida não só coloca em descrédito a reforma – o que prejudica alguns avanços – como mantém deliberadamente situações que na certa provocarão o contencioso.

Começando do início: a distribuição desproporcional de lucros (dividendos) está prevista para as sociedades limitadas. Lembro, desde logo, que esse tipo societário (sociedade limitada) tem a esmagadora maioria dos empreendedores brasileiros. Nessas sociedades empresárias, os sócios podem decidir, por meio do contrato social e de deliberação em reunião, que os lucros serão distribuídos sem respeitar a proporção da participação de cada um deles no capital social.

Como a sociedade limitada é caracterizada como uma “sociedade de pessoas” (diferentemente da sociedade por ações que seria uma “sociedade de capital”), essa possibilidade de remuneração desigual entre os sócios decorre da estrutura de capital da pessoa jurídica, que pode incentivar a participação, o engajamento ou o envolvimento de cada sócio na prospecção de clientes e negócios, bem como decorrer do arranjo societário que os sócios tenham escolhido para regular a relação entre si e entre eles e a sociedade.

A distribuição desproporcional de lucros (dividendos), dessa forma, é um instituto de natureza societária. Não decorre da regulamentação civil, o que implica afastar seu enquadramento ou sua qualificação como “doação”. Não há qualquer doação, seja de quem for, no caso da deliberação societária (frise-se) acerca da distribuição desproporcional de lucros.

Pois bem: de acordo com o artigo 155, I da Constituição Federal, “[c]ompete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre (…) doação, de quaisquer bens ou direitos”. Quando “escolheu” a doação como fato gerador do tributo, o constituinte originário estava pensando na relação jurídica que consta nos manuais de direito civil e que, hoje, é regulada da seguinte maneira pelo Código Civil: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra” (artigo 538).

Nesses termos, a doação requer: (i) contrato entre doador e donatário; (ii) liberalidade do doador; e (iii) transferência de patrimônio (bens ou vantagens) do doador para o donatário. Nenhum desses requisitos se verificam na distribuição desproporcional de lucro (dividendos).

Em primeiro lugar, não há contrato bilateral; a distribuição de lucros é uma relação jurídica “multipartite”, que envolve os sócios e a sociedade – sim, é preciso que haja interesse também da pessoa jurídica para que os dividendos sejam distribuídos de maneira desproporcional, haja vista se trata da sua estrutura de capital.

Depois, indo diretamente ao último requisito, não há transferência de patrimônio de um sócio ao outro, porque o direito ao resultado positivo da empresa (entendida como atividade econômica desenvolvida de maneira organizada, nos termos do artigo 966 do mesmo Código Civil), na forma de dividendos (distribuição dos lucros), apenas se constitui com a deliberação da destinação dos lucros pelos próprios sócios, de acordo com o contrato social. Dessa forma, o contrato social, primeiro, e a ata de deliberação dos lucros, depois, já delimitam e definem os direitos de cada sócio.

Voltemos ao segundo requisito, que a mim me parece o mais relevante. A distribuição desproporcional de lucros (dividendos) não é feita por liberalidade dos sócios. Resgato, aqui, uma máxima das finanças corporativas: “não há almoço grátis”. Isso quer dizer que a previsão da distribuição desproporcional de lucros (dividendos) não é por bondade ou altruísmo dos sócios: existem justificativas econômico-financeiras e operacionais para a decisão de se distribuir o resultado de maneira diferente a cada um dos sócios. Como mencionado, a distribuição desproporcional de lucros (dividendos) decorre da estrutura de capital da sociedade limitada, e traz todas as consequências dessa caracterização.

Todo o comentado até aqui se restringe ao nível constitucional. Portanto, esse dispositivo do projeto de lei da reforma tributária é inconstitucional.

Mas, além disso, não se pode ignorar o disposto no artigo 110 do Código Tributário Nacional – CTN: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal (…) para definir ou limitar competências tributárias”.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR EDISON FERNANDES – SÃO PAULO

 

 

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