Pontos positivos e negativos do texto do PLP 68/24, a ser apreciado pelo Senado
Este é o oitavo artigo da nossa série sobre o imposto seletivo, um tributo novo no Brasil, mas que representa uma das formas mais antigas de tributação do consumo no mundo. O IS tem sido cada vez mais utilizado como instrumento de políticas públicas e é usual entre os países que adotam o modelo de imposto sobre o valor adicionado (IVA).
A combinação entre esses dois tributos ocorre porque, enquanto o IVA incide sobre o consumo de um modo geral, da forma mais uniforme possível, o IS é propositadamente discriminatório, cobrado sobre alguns bens e serviços, usualmente em razão de sua nocividade à saúde ou ao meio ambiente.
Nosso país se alinhou a essa prática internacional ao prever que a União poderá instituir o IS sobre “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, nos termos de lei complementar”, no art. 153, VIII, da CF. A instituição do IS está ainda em debate no âmbito do PLP 68/2024, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados. É sobre esse texto, votado na casa legislativa, que centraremos esta breve análise.
Veículos, embarcações e aeronaves
O PLP 68 prevê a incidência do IS sobre veículos, embarcações e aeronaves, que tem causado controvérsia. Alguns defendem que seria mais apropriado cobrar IS sobre os combustíveis, em linha com a prática da OCDE[1] e porque os prejuízos ao meio ambiente decorreriam da queima do combustível, e não da utilização do veículo, embarcação ou aeronave.
Embora os debates sobre a necessidade, adequação e eficácia do IS sejam sempre bem-vindos, em razão de sua finalidade extrafiscal, é importante registrar que o Brasil não seria o único país do mundo a tributar veículos. Artigo recente da professora Rita de La Feria[2] aponta, com base em pesquisa realizada pela European Automobile Manufacturers’ Association (ACEA), que a cobrança de excise taxes sobre a aquisição ou a propriedade de veículos é usual na União Europeia.
O tema tem sido analisado há anos na literatura internacional, que cita a tributação de veículos como uma espécie de “tributo ambiental”, que pode variar de acordo com “as características do combustível que o veículo utiliza, de acordo com o consumo estimado de combustível e, ou, de acordo com o fato de o veículo estar ou não equipado com um conversor catalítico”[3]. Essas e outras características foram consideradas no art. 416 do PLP 68, que fixa diretrizes para a futura fixação das alíquotas do IS sobre veículos.
Ademais, duas alterações realizadas pela Câmara no PLP 68 têm sido criticadas: a exclusão dos caminhões do âmbito de incidência do IS, embora usualmente movidos a diesel, e a supressão da alíquota zero para veículos elétricos e outros considerados sustentáveis. São pontos frequentemente debatidos na experiência internacional, em que a implementação de “environmental taxes” tem se mostrado desafiadora, especialmente quanto ao desenho apropriado do IS[4].
Bebidas açucaradas
Outra previsão controversa do PLP 68 diz respeito às bebidas açucaradas. Embora diferentes países tenham instituído IS sobre alimentos e bebidas para combater obesidade e diabetes, não há consenso científico sobre a eficácia dessas políticas públicas, especialmente por serem condições multifatoriais.
O tema chegou a ser analisado pelo FMI, segundo o qual “o impacto final dos impostos sobre a obesidade e os resultados de saúde é incerto e provavelmente pequeno, com nenhum estudo ainda documentando uma ligação entre um imposto indireto e um resultado de saúde”[5].
O desenho do IS sobre bebidas e alimentos deve considerar “as características locais, incluindo os hábitos alimentares da população local”, e tende a ser pouco eficaz quando submete um ou poucos produtos à tributação especial, conforme José Maria Arruda de Andrade[6].
Um exemplo de país que instituiu IS sobre bebidas açucaradas é o do México, em que estudos posteriores evidenciaram que o aumento de preços decorrente da tributação levou a população de menor renda a consumir bebidas açucaradas mais baratas, de pior qualidade. Tais resultados corroboram a importância da análise ex post de políticas públicas como essa – tal como defendemos em nosso artigo de 21 de janeiro de 2024 –, para evitar que a tributação gere efeitos adversos.
Outros países criaram impostos seletivos sobre alimentos e bebidas considerados prejudiciais à saúde, como Dinamarca, Hungria, França e Reino Unido. Vale destacar o caso da Dinamarca, que acabou revogando seu imposto sobre gordura saturada em razão de desafios administrativos e de competitividade.
Produtos fumígenos e bebidas alcoólicas
A cobrança de IS sobre esses bens é usual na experiência internacional e recomendada por órgãos como FMI e OMS.
Na União Europeia, as Diretivas 92/83 e 92/84 obrigam os países membros a instituírem o IS sobre bebidas alcoólicas, e preveem alíquotas mínimas a serem observadas, as quais são progressivas conforme o teor alcoólico, em linha com a previsão inserida pela Câmara dos Deputados no art. 418, §4º do PLP 68. Sobre as bebidas alcoólicas, vale conferir nosso artigo publicado em 8 de julho de 2024.
Bens minerais
O PLP 68 prevê a cobrança do IS sobre minério de ferro, petróleo bruto, gás natural (exceto quando utilizado como insumo) e carvão mineral, à alíquota máxima de 0,25%.
A cobrança do IS sobre bens minerais foi objeto de artigos desta série, publicados em 12 de fevereiro de 2024 e 15 de abril de 2024. Nossas principais críticas envolvem a previsão de incidência nas exportações e o fato de o IS ser um tributo sobre o consumo, e não sobre os atos de extrair, produzir, importar ou comercializar determinado bem.
Conforme ensina a professora Rita de La Feria: “O fato gerador é o uso dos produtos sujeitos a imposto, mesmo que, para fins de simplificação, a lei utilize um substituto legal, como a venda, importação ou registro do produto sujeito a imposto, para presumir o consumo”[7].
Ademais, a cobrança do IS sobre bens minerais, exemplo escolástico de insumo, pode violar a própria finalidade do imposto de proteger a saúde e o meio ambiente, pois minérios como o ferro têm diversas aplicações, incluindo a fabricação de equipamentos médicos e de preservação ambiental.
A cobrança do IS sobre a mera extração de bens minerais não encontra paralelo em nenhum outro país: o imposto previsto no PLP 68 não pode ser confundido com os carbon taxes, sempre atrelados às emissões de carbono. Se assemelha aos royalties e outras contribuições cobrados pelos países sobre atividades extrativistas, o que ocorre inclusive no Brasil, a exemplo da compensação financeira pela exploração mineral (CFEM), com a qual o IS gerará indiscutível bitributação.
Concursos de prognósticos e fantasy sport
A Câmara adicionou ao PLP 68 a incidência do IS sobre loterias e fantasy sport. O tema é complexo e merece estudo detalhado, mas vale registrar que outros países cobram IS sobre apostas, a exemplo de Estados Unidos, Austrália, Canadá, França e Alemanha.
A literatura alerta para a complexidade do desenho do IS sobre tais atividades, especialmente quanto à identificação de uma base de cálculo que capture apropriadamente o consumo (valor apostado ou ganho obtido, por exemplo).
Armas e munições: uma infeliz omissão no PLP 68
A possibilidade de cobrança do IS sobre armas e munições foi expressamente inserida pelo Senado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, de 2019, mas suprimida pela Câmara dos Deputados na revisão final do texto. Alegava-se que a Constituição não deveria especificar os bens e serviços que seriam tributados pelo IS. A despeito da ausência de previsão expressa, entendemos que a incidência do IS sobre esses bens não só poderia como deveria constar do PLP 68.
Isso porque, como visto ao longo desta série de artigos, o IS é um tributo indutor de comportamentos, que visa desestimular determinados atos de consumo no contexto de uma política pública, voltada à proteção da saúde ou do meio ambiente. Ele é, portanto, um tributo cuja seletividade é norteada pela nocividade do bem ou serviço.
Hoje as armas e munições estão sujeitas à seletividade do ICMS e do IPI, mas baseada na essencialidade do bem ou serviço, o que faz com que sofram a incidência de tributos sobre o consumo em percentual que pode ultrapassar 80%. A reforma tributária, contudo, remove a seletividade baseada na essencialidade do sistema tributário brasileiro, fazendo com que armas e munições sofram redução substancial de carga tributária nominal, pois ficarão sujeitas à alíquota padrão do IBS e da CBS, estimada em 26,5%.
Além dessa redução de carga tributária, há um efeito adverso preocupante: o cashback do IBS e da CBS é permitido para os bens e serviços não tributados pelo imposto seletivo, o que, no caso das armas e munições, desoneraria ainda mais seu consumo.
Não bastasse o cenário acima apresentado, a inclusão de armas e munições na lista de bens e serviços sujeitos ao IS se alinha perfeitamente ao propósito desse imposto, pois são prejudiciais tanto à saúde como ao meio ambiente. Seu uso está associado a homicídios, suicídios, atos de violência e acidentes, e a crimes ambientais. Esses fatores levaram o Estado da Califórnia, por exemplo, em 2023, à criação de IS sobre todas as armas, munições e peças de armas (AB 28).
Conclusão
O desenho do IS no PLP 68 aproxima o Brasil das melhores práticas internacionais de tributação do consumo e possibilita a utilização, pelo governo federal, desse importante instrumento na realização de políticas públicas de saúde e meio ambiente.
A instituição do imposto, contudo, deve ser precedida de análise ex ante, com transparência dos fundamentos da cobrança sobre cada bem e serviço à sociedade, e sucedida por avaliações periódicas da exação, mediante análise ex post, para evitar efeitos adversos e assegurar que a política pública em que se insere a tributação produza os resultados esperados.
Ademais, há pontos que ainda merecem debate aprofundado no Congresso Nacional, em nossa opinião, com destaque para a extração de bens minerais e as armas e munições.
_______________________________
[1] Nesse sentido, confira-se o relatório OECD Tax Trends 2022, p. 164, disponível em https://www.oecd.org/en/publications/consumption-tax-trends-2022_6525a942-en.html. Acessado em 17 de julho de 2024, às 14:47.
[2] de la Feria, Rita, Non-(Fully) Harmonised Excise Taxes and Irrebuttable Presumptions (March 28, 2024). EC Tax Review 33(3), 98-108. Disponível em https://ssrn.com/abstract=4775842.
[3] Barde, Jean-Philippe. Braathen, Nils Axen. Environmentally related levies. In: Theory and Practice of Excise Taxation, edited by Sijbren Cnossen. Oxford University Press, 2005, p. 131.
[4] Conforme relatam Jean-Philippe Barde and Nils Axel Braathen no artigo Environmentally Related Levies (In: Theory and Practice of Excise Taxation, edited by Sijbren Cnossen. Oxford University Press, 2005).
[5] How to Apply Excise Taxes to Fight Obesity, elaborado por Patrick Petit, Mario Mansour e Mr. Philippe Wingender, https://doi.org/10.5089/9781513585697.061.
[6] Imposto seletivo e pecado: juízos críticos sobre tributação saudável – São Paulo: IBDT, 2024, p. 341.
[7] de la Feria, Rita, Non-(Fully) Harmonised Excise Taxes and Irrebuttable Presumptions (March 28, 2024). (2024) EC Tax Review 33(3), 98-108, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=4775842
FONTE: JOTA – POR BRENO VASCONCELOS E THAIS VEIGA SHINGAI