Não há, na proposta do governo, a observância das hipóteses de exceção previstas no artigo 156-A da EC 132.
Com a apresentação da proposta do texto da lei complementar para regulamentar o novo sistema de tributação sobre o consumo, inicia-se a fase de depuração do texto, dos debates, críticas, apresentação de sugestões e variadas opiniões jurídicas.
Em uma primeira análise, é possível extrair uma série de boas sugestões e algumas questões que prometem acirrar os atritos entre o Fisco e os contribuintes, como aquela que envolve o direito ao crédito do imposto em atendimento ao princípio da não cumulatividade.
Com efeito, o texto original da então proposta de Emenda Constitucional (EC) nº 45 trazia, dentre os diversos princípios orientativos da reforma tributária, o princípio da neutralidade. No decorrer do processo legislativo, o princípio da neutralidade foi deslocado para informar especificamente o imposto sobre bens e serviços (artigo 156-A, parágrafo 1º), reafirmando o desejo que este tributo seja não cumulativo.
A Emenda Constitucional nº 132 definiu que o IBS será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante “cobrado” sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial, inclusive direito, ou de serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal especificadas em lei complementar e as hipóteses previstas na Constituição.
Tem-se, de plano, que a regra geral seguiu o mesmo mecanismo previsto atualmente, no sentido de autorizar o crédito do imposto em relação ao imposto “cobrado” na operação anterior.
Mas a EC 132 também definiu que a lei complementar disporá o regime de compensação dos créditos, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do “efetivo recolhimento” do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que: a) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços; ou b) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação (artigo 156-A, parágrafo 5º, II, “a” e “b” da EC 132).
Vale dizer, a despeito da regra geral que admite o crédito ao adquirente vinculado à cobrança do imposto na etapa anterior, também admitiu exceções, condicionando o creditamento ao pagamento do imposto cobrado na operação anterior. E, nestes casos, elencou hipóteses específicas.
O que se pretendeu foi admitir exceções, por exemplo, quando o fornecedor, embora idôneo, estivesse com significativa inadimplência e com baixa classificação em ratings de gestão de risco, caracterizando o justo receio do poder público em não receber referido imposto. Nesse caso, faria total sentido outorgar ao próprio adquirente a faculdade de pagar o imposto e, ato seguinte, tomar o respectivo crédito, afastando-o do risco de glosa do crédito por adquirir bens ou serviços de fornecedores em delicada situação fiscal.
A proposta encaminhada pelo governo federal propõe, em seu artigo 28, que o contribuinte sujeito ao regime regular do IBS e da CBS poderá apropriar créditos desses tributos quando “ocorrer o pagamento” dos valores do IBS e da CBS incidentes sobre as operações nas quais seja adquirente de bem ou de serviço, excetuadas exclusivamente as operações consideradas de uso ou consumo pessoal e as demais hipóteses previstas na proposta.
Percebe-se, assim, que a proposta do governo federal estabelece, como regra geral, o direito ao crédito vinculado ao pagamento anterior do imposto, em contraposição à regra geral prevista na EC 132, que admite, por sua vez, a mera cobrança como requisito autorizativo do creditamento pelo adquirente.
Não há, na proposta do governo federal, a observância em caráter excepcional das hipóteses de exceção previstas no já citado artigo 156-A, parágrafo 5º, II, “a” e “b”, da EC 132. Ao contrário, o pagamento aparece como regra geral na proposta do governo, o que, a princípio, parece não encontrar abrigo ao disposto na EC 132.
É sabido que o creditamento vinculado ao pagamento do imposto é elemento essencial para viabilizar todo o sistema proposto, especialmente a garantia de que o tributo arrecadado seja efetivamente transferido ao ente federativo de destino, assim como ao contribuinte detentor de crédito acumulado. Não se pode conceber uma obrigação de entregar, aos seus respectivos titulares, valores que não foram pagos, tal como ocorre nos dias atuais. Para relembrar, atualmente não há viabilidade de pronta restituição de créditos acumulados aos contribuintes, em grande parte, devido aos créditos fictícios da moribunda guerra fiscal e aos créditos provenientes de impostos não pagos por contribuintes inadimplentes e inidôneos.
Enfim, não pretendo defender que o crédito vinculado à cobrança seja melhor ou pior do que o crédito vinculado ao pagamento, mas a análise eminentemente jurídica segue a perspectiva daquilo que foi aprovado pelo legislador constitucional derivado.
Em conclusão, essa questão deve merecer o devido debate no processo legislativo, deixando claro que o crédito vinculado exclusivamente ao pagamento pode pecar por inconstitucionalidade, ao passo que o crédito desvinculado do pagamento pode comprometer a higidez e a lógica inicial do sistema de tributação do consumo inicialmente idealizado.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR EDUARDO SALUSSE — SÃO PAULO