Para conter o excesso de judicialização, somente uma abordagem multifacetada envolvendo diferentes agentes pode mudar um cenário, por si só, complexo.
O sistema judiciário nacional enfrenta um panorama contraditório: por um lado, o acesso à Justiça se mostra como um alicerce importante do Estado brasileiro e reforça o caráter sólido de nossas instituições, em contrapartida, esse mesmo acesso vem sendo prejudicado por uma cultura de litigância que compromete a eficácia e a qualidade das decisões judiciais.
Esse cenário pode ser comprovado quando observamos alguns indicadores. Segundo o último relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário finalizou 2022 com 81,4 milhões de processos em tramitação, número 5,3% maior que o de 2021 e que indica uma tendência de crescimento que desafia a eficiência do sistema.
Há, aliás, uma ideia muito difundida no senso comum sobre a ineficácia da Justiça, mas o quanto desse pressuposto realmente se comprova? No ano passado, por exemplo, 30,3 milhões dos processos do Poder Judiciário foram solucionados, dado que representa uma alta importante de 10,8%.
Some-se a isso o fato de que o país possui hoje uma relação de apenas 8,4 magistrados por 100 mil habitantes – na Europa, essa relação é de 18,3 magistrados; portanto, mais que o dobro do Brasil – e temos um contexto que contradiz o jargão da ineficiência jurisdicional brasileira.
O que ocorre é que o avanço positivo nos números de resolução processual não tem sido suficiente diante do excesso de judicialização: enquanto 30,3 milhões de processos foram solucionados, outros 31,5 milhões de casos novos entraram na Justiça (alta de 10% em relação a 2021).
Um dos efeitos da excessiva demanda judicial brasileira é econômico. Em 2022, as despesas do Poder Judiciário alcançaram R$ 116 bilhões (aumento de 5,5%). Em contrapartida, a arrecadação pública relacionada com a atividade jurisdicional foi de R$ 67,85 bilhões. Ou seja: há um claro desnível entre o custo do Judiciário e o que ele arrecada para o Estado.
Em termos equivalentes, é como se cada cidadão do país pagasse mais de R$ 540,00 pelos serviços de justiça (dado que também aumentou quase 5% em relação a 2021).
Há de se frisar ainda que o próprio Estado brasileiro surge como um dos principais litigantes – e, portanto, contribui diretamente para uma cultura de excessiva judicialização -, muitas vezes por falhas na administração pública ou por posturas inflexíveis em litígios.
Entes privados, como grandes corporações, também cumprem papel significativo para o volume de processos elevado no Brasil, embora haja um movimento crescente no setor privado no sentido de investir em métodos alternativos de solução de controvérsias.
Como fica evidente, é a sobrecarga que impacta de modo negativo no enfrentamento dos processos espalhados pelos tribunais do país. Esse ambiente, por sua vez, se constrói por meio de diferentes fatores que merecem uma análise mais detalhada.
O primeiro é o supracitado excesso de judicialização, inclusive por meio da litigância predatória – grandes volumes de ações ajuizadas de forma padronizada e, via de regra, com documentação irregular – que, embora proibida no Brasil, segue sendo praticada em larga escala.
O excesso de judicialização pode ser exemplificado no âmbito do Direito do Consumidor. Segundo dados do CNJ, de cada 4 ações nas Justiças Estadual e Federal, uma é de consumo. Concomitantemente, um estudo da Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo estimou que, só no Tribunal de Justiça paulista, a litigância predatória gera um prejuízo médio de R$ 2,7 bilhões ao ano para os cofres estaduais.
E aqui chegamos a outros dois pontos importantes: embora a gratuidade do acesso à Justiça seja uma garantia constitucional indispensável para o funcionamento do Estado Democrático de Direito; sua aplicação indiscriminada tem sido apontada como um dos mecanismos que contribui para a judicialização excessiva, alimentando práticas a busivas e fraudulentas.
Assim, cabe também ao Poder Legislativo o avanço em reformas que coíbam a advocacia predatória e incentivem processos de resolução amigável, uso de outros fóruns e simplificação da estrutura jurisprudencial do país, de modo que se reduzam as margens para interpretações divergentes.
Em conjunto com tais passos, para conter o excesso de judicialização, somente uma abordagem multifacetada envolvendo diferentes agentes – Legislativo, OAB, empresas e poder público – pode mudar um cenário, por si só, complexo.
Outro ponto importante dentro desse leque de ações diz respeito aos investimentos em tecnologia, capazes de trazer mais celeridade no processamento de casos em curso no país.
Sobre essa questão, é positivo notar o aumento da maturidade tecnológica dos tribunais brasileiros, que saltou 68,7% em 2021, para 79,14%, segundo o iGovTIC-JUD de 2022, estudo do Poder Judiciário.
No entanto, ainda há muito a se avançar para uma real digitalização dos tribunais brasileiros que tende a gerar efeitos diretos em termos de ganhos de produtividade, redução da sobrecarga e até apoio na tomada de decisão dos magistrados.
Quando combinados – tecnologia e abordagem multidisciplinar de diferentes poderes e representantes da sociedade brasileira -, esses fatores podem ainda contribuir com o enfrentamento da morosidade processual e, por fim, com o aumento do acesso à Justiça para quem realmente precisa.
Henrique Parada é sócio do escritório Parada Advogados
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FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR HENRIQUE PARADA