Advogados temem reviravolta na jurisprudência e podem ir à Justiça contra julgamentos.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) pautou 58 processos, que cobram pelo menos R$ 11,5 bilhões, para as primeiras sessões do ano. Os julgamentos, marcados para o início de fevereiro, serão os primeiros sob nova gestão e desde a volta do voto de qualidade, que favorece a Fazenda Nacional.
Advogados temem uma reviravolta na jurisprudência. Além de bilionária, a pauta prevê discussões de teses que os contribuintes passaram a vencer com a extinção do voto de qualidade, em 2020, pela Lei nº 13.988. Lucros no exterior, amortização de ágio e preço de transferência, dentre elas.
O voto de qualidade foi restabelecido por meio de medida provisória (nº 1.160). Por esse critério, o presidente da turma — sempre um conselheiro indicado pelo Fisco — é quem tem o poder de decisão quando os julgamentos terminam em empate. Essa alteração foi anunciada no dia 12, como parte do pacote de medidas de recuperação fiscal.
“A repentina mudança da regra de julgamento em favor do Fisco criou um ambiente de insegurança jurídica, existindo razoável risco de que temas que os contribuintes venceram recentemente agora sejam julgados desfavoravelmente”, afirma Leandro Bettini, sócio do M. J. Alves e Burle.
A lista dos processos que serão julgados entre os dias 1º e 3 de fevereiro foi divulgada ontem pelo Carf. No mesmo dia, segundo o advogado, clientes procuraram a banca para avaliar a pertinência de questionar, na Justiça, a inclusão de seus casos em pauta.
Os mais de 50 processos irão a julgamento na 1ª Turma da Câmara Superior, a mais alta instância do órgão. Se perderem, os contribuintes ainda poderão recorrer à Justiça, mas terão que apresentar garantia do valor em discussão.
Os dois primeiros processos da pauta, com julgamento previsto para o dia 1º, envolvem a Petrobras. Estão em jogo R$ 5,4 bilhões. A discussão trata sobre lucros no exterior, uma das teses que teve jurisprudência revertida — em favor dos contribuintes — no período em que o critério de desempate mais favorável esteve em vigor.
Essa tese é relevante para a Petrobras, que estima R$ 21,55 bilhões em discussões semelhantes. São processos na esfera administrativa e judicial com chance de perda considerada “possível” no Formulário de Referência da empresa.
Outra tese de impacto, também prevista para ir a julgamento em fevereiro, envolve preço de transferência. Trata-se de um conjunto de métodos criados pela Receita Federal para indicar o valor que uma empresa pode pagar por um bem ou serviço transferido por companhia vinculada a ela, instalada em outro país.
General Motors e a Ford Motor Company Brasil estão entre as empresas que tinham discussões sobre esse tema e conseguiram derrubar as autuações da Receita Federal por meio do critério de desempate favorável ao contribuinte.
Agora, no mês de fevereiro, serão julgados três processos envolvendo a Nissan Brasil Automóveis e, com a mudança de critério, há risco de o desfecho ser diferente do de suas concorrentes.
Também estão em pauta processos que discutem amortização de ágio. Um deles envolve a Claro. A Receita Federal autuou a operadora em R$ 1,58 bilhão, conforme indica decisão de 2018 que cancelou parte da cobrança — e pode ser revista agora pela Câmara Superior.
Há ainda uma cobrança R$ 3,55 bilhões recebida pela B3, cinco processos de ágio envolvendo o Santander — que somam autuações de, pelo menos, R$ 500 milhões — e um outro, da Telefônica Brasil, que discute autuação de R$ 476,9 milhões.
Ágio é um valor pago pela rentabilidade futura da companhia adquirida ou incorporada. Pode ser registrado como despesa nos balanços e reduzir o valor a recolher de Imposto de Renda e CSLL.
A operação é permitida por lei, mas a Receita costuma autuar contribuintes quando interpreta que o único objetivo foi reduzir carga tributária. Nesses casos, a operação é desconsiderada e os tributos cobrados, com juros e multa.
Pelo menos quatro empresas conseguiram se livrar dessas cobranças no ano passado. Uma delas, a ArcelorMittal, que havia sido autuada em R$ 1,25 bilhão. A 1ª Turma da Câmara Superior cancelou a cobrança em julgamento em dezembro.
“Mas o cenário, hoje, é completamente diferente. Além da volta do voto de qualidade, não temos mais o Carlos Henrique de Oliveira”, diz um advogado militante do Carf que preferiu falar sob anonimato.
Oliveira era presidente do órgão e considerado bastante “ponderado”. No caso envolvendo a ArcelorMittal, por exemplo, ele foi o único dentre os conselheiros fazendários que votou contra a autuação. Ele foi substituído, neste mês, pelo auditor fiscal Carlos Higino Ribeiro de Alencar, indicado pelo ministro Fernando Haddad.
Advogados temem que a troca de comando dê ares mais fiscalistas ao Conselho. Higino é visto como um bom técnico e tem excelente currículo, mas nunca atuou nas delegacias de julgamento da Receita Federal (DRJ), a primeira instância administrativa, nem no Carf.
“Espera-se que o Carf siga fiel à sua missão de julgar os litígios tributários de acordo com a lei, não se prestando ao papel de máquina de arrecadação do governo federal”, diz Luiz Gustavo Bichara, do Bichara Advogados.
Ontem, nove entidades ligadas à advocacia enviaram carta à ministra do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, para esclarecer questões relacionadas ao voto de qualidade. “O retorno do voto de qualidade a favor da Fazenda não resultará em receita para a União, mas, sim, na migração das discussões para o Poder Judiciário”, afirmam.
Os advogados também afirmam que o estoque de processos do Carf, que atingiu R$ 1 trilhão no ano passado, não está relacionado à extinção do voto de qualidade. Citam o período de pandemia, que paralisou julgamentos, e também a greve dos auditores fiscais, que, no ano passado, provocou a suspensão das sessões por oito meses.
Gisele Bossa, sócia do Demarest e ex-conselheira do Carf, reforça que há movimentação no mercado para ingresso com medidas judiciais para que os casos sejam retirados de pauta até efetiva conversão da medida provisória em lei.
FONTE: Valor Econômico – Por Beatriz Olivon e Joice Bacelo, Valor — Brasília e Rio