Ministro João Otávio de Noronha: o Superior Tribunal de Justiça se tornou uma terceira instância.
Insetos e objetos em alimentos, brigas entre animais de estimação e disputas entre vizinhos são temas recorrentes na pauta do Superior Tribunal de Justiça (STJ). No início do mês, a 3ª Turma julgou mais um processo do tipo. Os ministros decidiram em três minutos e meio que uma consumidora teria direito a uma indenização por danos morais, no valor de R$ 10 mil, por ter comprado bombons com larvas.
O tribunal já julgou cerca de 15 processos sobre o tema, com pequenas variações. Como o fato de o consumidor ter comido ou não o doce ou se o alimento estava no prazo de validade, por exemplo.
Ao completar 30 anos, o tribunal da cidadania, como é conhecido o STJ, continua a atender todos os tipos de demandas dos cidadãos brasileiros. Nem a reforma do Judiciário de 2004, que pela Emenda Constitucional nº 45 criou os julgamentos repetitivos (um recurso é julgado e o resultado vale para processos semelhantes), e a mais recente reforma do Código de Processo Civil (CPC) foram capazes de impedir um estoque gigantesco – que chega a 322.216 mil processos – e evitar que casos de menor relevância e valores cheguem à Corte.
No processo dos bombons (REsp 1744321), a consumidora recorreu ao STJ após ter o pedido de danos morais negado pela segunda instância. Ela havia obtido apenas a restituição do valor gasto na compra do alimento. “Sou perseguida por processos com bichos nas comidas”, disse a ministra Nancy Andrighi na ocasião do julgamento.
Segundo a magistrada, os casos são comuns e o tribunal já possui jurisprudência no sentido de conceder o dano moral se o consumidor ingeriu o alimento. “Eu não consigo fazer essa diferenciação. A ojeriza e desconsideração com o consumidor está no momento de abrir e ver a larva”, afirmou a relatora, no voto.
Os autores de uma ação por danos morais, também pela presença de vermes em alimento, não obtiveram o mesmo desfecho no tribunal. A peculiaridade do caso está no fato de a comida ter sido consumida pelo cachorro da família que, pelos relatos do processo, teria passado mal com a ração contaminada. Ainda segundo o processo, o mal-estar e o sofrimento do bicho fez com que um dos proprietários passasse mal – aumento de pressão arterial.
O recurso, que chegou ao STJ em 2017, foi negado no início deste mês sem análise do mérito. O ministro Paulo de Tarso Sanseverino decidiu que o caso não poderia ser julgado, pela necessidade de análise de provas (AREsp 1394411), o que é vedado ao STJ.
Além de não aceitar o pedido, o magistrado aumentou os honorários advocatícios de 10% do valor da causa para 13% a serem pagos pelos donos do cachorro, que já haviam perdido a causa na segunda instância.
Já em 2000, a Corte Especial do STJ reuniu 15 ministros para começar a julgar o caso de dois rottweilers que mataram os papagaios da residência vizinha. Como os cães eram de um subprocurador do trabalho, em razão do foro pela função exercida pelo réu, o caso teve de ser submetido ao STJ (Rp 179)
Segundo o processo, durante a madrugada, dois dos quatro cães do subprocurador pularam uma cerca de 1,8 metro e mataram as aves. Em 2001, o processo foi suspenso por um acordo e o Ministério Público Federal (MPF) pediu a extinção da punibilidade da contravenção penal de “não guardar com a devida cautela animal perigoso” – artigo 31 da Lei de Contravenções, cuja pena é de dez dias a dois meses de prisão ou pagamento de multa. O pedido foi aceito em 2004 pelo então ministro Hamilton Carvalhido.
O presidente do STJ, ministro João Otávio de Noronha, afirma que temas como insetos em alimentos e outros desta natureza não deveriam chegar ao tribunal. Para o magistrado, a peculiaridade tem que se resolver no primeiro ou no segundo grau. “Precisamos mudar essa mentalidade. Todo mundo quer que o tribunal julgue a causa. Todos que perdem se sentem injustiçados.”
O fato, segundo Noronha, é que o tribunal cidadão se tornou uma terceira instância. O que não seria o seu papel e a função principal atribuída ao STJ pela Constituição, de ser o responsável por uniformizar a interpretação de lei federal no país.
“Não temos que entrar aqui numa briga de inquilino com locatário se ela não tiver uma repercussão, se a decisão que formos proferir não for além do interesse das partes”, diz. Segundo Noronha, só quando a ordem jurídica for gravemente violada, é que o STJ deveria intervir.
Apesar da reforma de 2004, o ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, avalia que o tribunal ainda não possui um filtro capaz de evitar a entrada de recursos, que em suas palavras “não param de chegar”. De acordo com ele, ferramentas como o recurso repetitivo ajudam, mas o que levará a Corte a se tornar um tribunal de precedentes, ocupado em julgar questões de relevância, será a adoção da repercussão geral, nos moldes do que já ocorre no Supremo Tribunal Federal (STF). “É a única saída. Tribunais semelhantes em outros países possuem filtros como esse”, afirma.
Pelo instrumento, só seriam admitidos recursos pelo STJ em causas que tivessem efetivo impacto social, econômico ou político. Atualmente tramita no Congresso Nacional uma proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê justamente a criação de uma repercussão geral para o STJ ou “relevância ao recurso especial”. A PEC 209/2012 já passou pela Câmara e no Senado tramita como PEC 10/2017. Está desde dezembro na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).
De acordo com a professora de processo civil da FGV-SP, Maria Cecília de Araújo Aspert, desde 2008, quando o recurso repetitivo foi adotado pelo STJ, já foram julgadas pelo menos 700 teses. Mas ainda assim, os recursos continuam a chegar ao tribunal. “Novas teses, muitas vezes sobre um mesmo assunto, são criadas a cada momento pelos advogados em roupagem diferente”, afirma ao citar outras causas de litigiosidade como o excesso de normas, ineficiência da administração pública e excesso de advogados no mercado.
No Brasil, explica a professora, os precedentes não são esgotados como no sistema de “common law”, adotado em países como Estados Unidos e Inglaterra. “Há nesses países uma análise da matéria fática, entendimento que será fonte do direito para as demais instâncias”, observa.
O advogado e professor de direito da PUC-SP, Marcelo Guedes, também presidente da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), lembra que a sistemática dos repetitivos barra apenas uma parte das demandas. E que nem toda demanda irrisória é repetitiva, o que obriga o STJ a se manifestar em casos menores.
FONTE: Valor Econômico – Por Zínia Baeta e Beatriz Olivon