A teoria da ficção jurídica como explicação para a existência das pessoas jurídicas, detentoras de autonomia, se tornou um dos fundamentos mais importantes do Direito Empresarial, pois assegura a separação entre a pessoa física dos sócios e a sociedade empresária em si considerada, garantindo a incomunicabilidade, a priori, entre o patrimônio da empresa e o patrimônio dos sócios, permitindo que os negócios possam crescer e se desenvolver sem que os bens pessoais dos empresários estejam diretamente expostos aos riscos das atividades econômicas, sendo essa autonomia patrimonial essencial para estimular o investimento e a inovação, colunas do ambiente empresarial.
Entretanto, quando essa separação é usada de forma a visar fraudes ou prejuízo a terceiros, a desconsideração da personalidade jurídica surge como uma solução aplicada em casos específicos como forma de se restabelecer a ordem jurídica e se impedir a violação a direitos.
Originada a partir da disregard doctrine, de matriz inglesa e norte-americana [1], a sua aplicação, em termos gerais, ocorre em duas situações: quando há desvio de finalidade, ou seja, se empresa é usada para fins ilícitos ou alheios ao propósito para o qual foi criada, e a confusão patrimonial, que se caracteriza pela mistura indevida entre os bens pessoais dos sócios e os bens da empresa. Nessas situações, o instituto permite que o patrimônio dos sócios seja alcançado para garantir o cumprimento das obrigações assumidas pela pessoa jurídica, protegendo credores e evitando fraudes.
Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015 [2], o incidente de desconsideração da personalidade jurídica trouxe maior segurança jurídica e transparência ao processo. Até então, era comum que a desconsideração fosse decretada de maneira sumária, sem a garantia de que os sócios ou administradores tivessem a oportunidade de apresentar sua defesa.
Por se tratar de uma ferramenta indispensável no ordenamento jurídico brasileiro, o incidente de desconsideração da personalidade jurídica assegura que a autonomia patrimonial das empresas seja respeitada enquanto protege os direitos de credores e terceiros prejudicados, reafirma o equilíbrio necessário entre proteção e responsabilidade empresarial, promovendo um ambiente de negócios mais seguro e justo, destacando as palavras de Requião[3], que adverte que “não se trata, é bom esclarecer, de considerar ou declarar nula a personificação, mas de torna-la ineficaz para determinados atos”, prosseguindo, “que a personalidade jurídica não constitui um direito absoluto, mas está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito”.
Todavia, a compatibilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica com o rito das execuções fiscais (Lei nº 6.830/1990) ainda é controvertida em termos jurisprudenciais, de modo que o Superior Tribunal de Justiça, visando pacificar a controvérsia, afetou o REsp nº 2.039.132/SP sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.209), ainda pendente de julgamento.
A discussão se mostrava mais do que relevante, pois a Lei da Liberdade Econômica [4] inovou com a inclusão no artigo 50 do Código Civil [5], estabelecendo significados interpretativos (espécie de lei interpretativa, ou seja, que explica uma lei anterior) aos conceitos de “confusão patrimonial” e “desvio de finalidade”.
Até então, se tratavam de conceitos jurídicos indeterminados, isto é, se tratavam de expressões vagas, incertas, que poderiam ser usadas para explicar toda sorte de condutas por parte das sociedades empresárias para que a sua personalidade fosse desconsiderada de forma a atingir o patrimônio particular dos sócios.
Apesar dos inegáveis benefícios alcançados pela alteração e inclusão de parágrafos e incisos no artigo 50 do Código Civil, regulamentando melhor a matéria, a reforma tributária se direcionou em sentido contrário.
Desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do IBS e da CBS
Com efeito, o artigo 24, inciso V, da Lei Complementar nº 214/2025, ao prever a responsabilidade passiva de contribuintes que não foram responsáveis (ou foram assim caracterizados pela lei tributária) pelo fato gerador do IBS e da CBS, conta com a seguinte redação:
“Art. 24. Sem prejuízo das demais hipóteses previstas na Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional) e na legislação civil, são solidariamente responsáveis pelo pagamento do IBS e da CBS:
V – qualquer pessoa física, pessoa jurídica ou entidade sem personalidade jurídica que concorra por seus atos e omissões para o descumprimento de obrigações tributárias, por meio de:
a) ocultação da ocorrência ou do valor da operação; ou
b) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial;”
Perceba-se, em primeiro ponto, que a legislação não se preocupou em conceituar o “desvio de finalidade” ou “confusão patrimonial”, incumbindo ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias [6] definir e uniformizar, com base no artigo 50 do Código Civil – assim esperamos – a definição de tais institutos ou hipóteses para fins tributários.
Contudo, a desconsideração da personalidade jurídica, sob o enfoque da reforma tributária, assume um patamar mais amplo e, quiçá dizer, indeterminado, uma vez que qualquer pessoa – ou entidade sem personalidade –, pela legislação, pode ser responsabilizada pelo pagamento do IBS e da CBS caso a administração tributária entenda que houve concorrência omissiva ou comissiva para o descumprimento de obrigações tributárias.
A lei complementar, no entanto, não define o que deveria se entender por “atos e omissões para o descumprimento de obrigações tributárias” e, por essa lógica, para se demonstrar o quão falha é a redação legal — com as devidas vênias — até mesmo um contador que preste serviços para determinada pessoa jurídica poderia ser responsabilizado pelo adimplemento dos tributos caso a administração tributária entenda que seus atos — omissivos ou comissivos — concorreram para o descumprimento de obrigações tributárias.
Essa interpretação, a nosso ver, não se coaduna com os valores e princípios estabelecidos na Constituição, a uma porque se trataria de clara violação ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, e por outra porque ao processo administrativo-tributário devem ser aplicadas as regras do direito administrativo sancionador [7], permitindo-se a conclusão de que “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”, conforme artigo 5º, inciso XLV, da Constituição.
Além dessa possibilidade, a incerteza sobre a adoção do rito previsto no Código de Processo Civil acresce à insegurança jurídica de um novo modelo tributário, fazendo — ainda mais — pertinente que o princípio do contraditório e da ampla defesa sejam respeitados caso a administração tributária, em execuções fiscais, pretenda atingir os bens particulares dos sócios (se a desconsideração for regular) ou se atingir os bens da empresa por dívidas do sócio (se a desconsideração for inversa).
Em outras palavras, esse mecanismo — adoção do rito específico — equilibra dois aspectos fundamentais: a proteção da autonomia patrimonial das empresas e a responsabilização daqueles que abusam dessa proteção, não podendo a personalidade jurídica ser usada como um artifício para fraudar credores ou burlar a legislação, mas sua relativização deve ocorrer de maneira excepcional, apenas em casos devidamente comprovados, sendo essencial essa cautela para evitar insegurança jurídica, que poderia desestimular investimentos e enfraquecer o ambiente econômico.
Não há dúvidas, entretanto, que novos debates poderão surgir a respeito do alcance ou amplitude da desconsideração da personalidade no âmbito do IBS e da CBS, e como solução, pensamos ser essencial que seja adotada ao dispositivo legal uma interpretação conforme a Constituição para que se impeça o abuso do instituto pela administração tributária em detrimentos de pessoas que não possuem causalidade direta ou indireta com o fato gerador da obrigação tributária.
Em conclusão, a reforma tributária trouxe significativas alterações no regime de desconsideração da personalidade jurídica quando aplicada pela administração tributária, mostrando-se desafiador compatibilizar a redação com os princípios e valores estabelecidos na Constituição. Além disso, o elemento boa-fé não pode ser desconsiderado, pois o objetivo principal é punir aqueles que conscientemente abusam dessa separação patrimonial como forma de não se responsabilizar pelo pagamento de determinados tributos, fortalecendo a confiança nas relações econômicas e garantindo que as empresas cumpram seu papel como agentes de desenvolvimento econômico e social.
[1] CRUZ, Santa André. Manual de Direito Empresarial – Volume Único. 13.ed, rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodvm, 2023, p. 600.
[2] Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. § 1º O sócio réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade. § 2º Incumbe ao sócio que alegar o benefício do § 1º nomear quantos bens da sociedade situados na mesma comarca, livres e desembargados, bastem para pagar o débito. § 3º O sócio que pagar a dívida poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo. § 4º Para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto neste Código.
[3] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial, 22. ed. São Paulo, Saraiva, 1995, v. I, p. 277
[4] Lei nº. 13.874/2019
[5] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
[6] Art. 321. Compete ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias: I – uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS em relação às matérias comuns;
[7] A aplicação das regras do direito administrativo sancionador, à similaridade do que ocorre para os atos de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992), encontra ressonância no fato de que o descumprimento das obrigações tributárias pode ocasionar, em tese, o cometimento de crimes previstos na Lei nº 8.137/1990.
FONTE: CONSULTOR JURÍDICO – POR JUAREZ ARNALDO FERNANDES E ADRIANO HENRIQUE BAPTISTA