Composição do Anexo de Riscos Fiscais parece ser guiada mais pela proximidade do julgamento.
Está na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) o Tema 1102, que trata da “revisão da vida toda” para aposentadorias e benefícios daqueles que contribuíam para a previdência antes de 26 de novembro de 1999, data de publicação da Lei nº 9.876/1999, que estabeleceu a regra de transição já considerada inconstitucional pelos ministros. Pendem de julgamento os embargos de declaração opostos pela Advocacia-Geral da União (AGU), cujo objeto engloba a modulação de efeitos da decisão.
Segundo noticiou este Valor, entre União e especialistas há uma guerra de valores: para a União, a decisão teria um impacto de R$ 480 bilhões nos cofres públicos, enquanto para o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário o montante seria de, apenas, R$ 1,5 bilhão. Independentemente da tese em debate e da extensão que será conferida ao julgamento, o caso joga luzes, mais uma vez, sobre o uso de argumentos relacionados aos impactos orçamentários das decisões judiciais.
Como já me manifestei em “Argumentando pelas consequências no direito tributário” (Noeses, 2011), entendo que o financiamento do Estado está na base da concepção do direito tributário e, por isso, razões relacionadas com os impactos que certa decisão pode gerar nas contas públicas não seriam, em princípio, inadequadas para a construção da justificativa da decisão. Naturalmente que aproximar a atividade financeira do direito tributário não implica afirmar que o exercício da tributação é livre de quaisquer amarras. Ao contrário: tributos são necessários para a existência material do Estado e, justamente por isso, o exercício da tributação deve observar os valores daquele Estado que é por ela suportado. Em que medida os argumentos orçamentários ou outros, relacionados com os valores do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988, irão prevalecer, dependerá das razões apresentadas por ocasião da justificação da decisão.
Ora, sendo argumentos orçamentários passíveis de serem incorporados nas decisões judiciais, faz-se fundamental estabelecer em que termos isso seria possível. Esse ponto é relevante porque, no geral, quando se trata de apontar o prejuízo fiscal de determinada tese, há pouca análise das leis orçamentárias que embasam esse mesmo prejuízo. Nesse ponto, mais uma vez, a conexão entre direito tributário e direito financeiro é fundamental. Considerar que as normas orçamentárias podem alimentar o rol de argumentos jurídicos a serem analisados em uma determinada disputa judicial amplia e qualifica o debate de teses tributárias.
Nesse ponto, nossos olhares devem se voltar para a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e seu Anexo de Riscos Fiscais. Nos termos do artigo 165, parágrafo 2º da Constituição, a LDO “compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal”, bem como as “diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com trajetória sustentável da dívida pública”, dentre outros elementos. Nos termos do artigo 4º, parágrafo 3º da Lei Complementar nº 101/2000, Lei de Responsabilidade Fiscal, a LDO conterá o Anexo de Riscos Fiscais, “onde serão avaliados os passivos contingentes e outros riscos capazes de afetar as contas públicas, informando as providências a serem tomadas, caso se concretizem”.
Trata-se de conferir previsibilidade ao orçamento público e garantir transparência quanto aos recursos que poderão ser implicados à luz dos eventos descritos no Anexo de Riscos Fiscais. A Lei Orçamentária Anual, por sua vez, reforça esses objetivos. Nos termos do artigo 5º, inciso III da Lei de Responsabilidade Fiscal, tal norma deverá conter reserva de contingência destinada ao “atendimento de passivos contingentes e outros riscos e eventos fiscais imprevistos” – tais como aqueles enumerados no Anexo de Riscos Fiscais.
Em ambos os casos, LDO e LOA, o que se vê é a exigência de um planejamento orçamentário relacionado às possíveis perdas judiciais da administração: seja pela previsão detalhada do risco no Anexo de Riscos Fiscais, seja para previsão de uma reserva para fazer frente ao risco eventualmente realizado. Disso decorre que eventuais prejuízos que decisões judiciais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal possam causar às contas públicas não deve ser uma surpresa do ponto de vista orçamentário. Ao contrário: devem estar fundamentados nos números presentes tanto na LDO quanto na LOA. Os argumentos relacionados com o impacto orçamento, portanto, devem se limitar a esses dados, cujo caráter é formativo da peça orçamentária.
Voltando-se os olhos para o Anexo de Riscos Fiscais e a indicação do possível impacto do Tema 1102, para o ano de 2022, estimou-se o impacto de R$ 46,4 bilhões. Tal se deu na Lei nº 14.194/2021, a LDO/2022. Vale notar que no momento da publicação da norma, agosto/2021, o Supremo Tribunal Federal já começava a forjar o entendimento pela aplicação da regra mais favorável aos segurados da previdência. A mesma estimativa de impacto se repetiu para o ano de 2023, como se vê do Anexo de Riscos Fiscais da LDO/2023 (Lei nº 14.436/2022). Foi apenas no Anexo de Riscos Fiscais integrante da LDO/2024 (Lei nº 14.761/2023) que o cenário mudou: para o presente ano, a estimativa de risco fiscal foi de R$ 480 bilhões.
Diante desses números, não é preciso dizer muito: a composição do Anexo de Riscos Fiscais parece ser guiada mais pela proximidade do julgamento da modulação de efeitos de decisões com impacto para a União do que, propriamente, por critérios técnicos. Ainda que os argumentos construídos à luz dos prejuízos orçamentários sejam, a meu ver, possíveis teoricamente, eles devem estar fundados em elementos seguros – algo no mínimo questionável neste caso.
Faz-se fundamental que os contribuintes se apropriem das regras orçamentárias para que possam contestar com propriedade jurídica ilações quanto a prejuízos mal estimados ou inseridos no Anexo de Riscos Fiscais ao sabor do andar do processo no STF. Ou bem o risco existe e se manifesta assim que tenha havido o reconhecimento de repercussão geral – ou ao menos votos desfavoráveis à União –, ou ele é manipulado para pressionar a opinião pública e, consequentemente, a consciência dos julgadores. O escrutínio das normas financeiras pode resultar em maior controle público do orçamento e aumento da cidadania fiscal. Isso tudo, porém, somente é possível pelo reconhecimento de que direito tributário e direito financeiro caminham juntos; são dois lados da mesma moeda.
FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR TATHIANE PISCITELLI — SÃO PAULO