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ICMS E A TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIA ENTRE FILIAIS

23 de fevereiro de 2024

A Lei Kandir determina que o cálculo do ICMS/ST levará em conta o valor do imposto próprio do substituto, montante esse inexistente na transferência de mercadorias.

Dentre os assuntos tributários objeto de medidas publicadas no fim do ano de 2023, são relevantes as questões envolvendo o ICMS nas transferências interestaduais de mercadorias entre filiais, que ganhou relevância com o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49, em 2021.

A importância do tema ficou mais evidente com a recente publicação dos Convênios ICMS 178 e 225, de 2023, e da Lei Complementar (LC) nº 204/2023, que alterou a Lei Kandir. Essa legislação objetivou regulamentar a não incidência do ICMS sobre a transferência de mercadorias entre filiais, a forma como os contribuintes têm assegurados os créditos do imposto relativos às operações anteriores à transferência e a aplicação do regime de substituição tributária (ICMS/ST).

Vale lembrar que na ADC 49 o STF julgou inconstitucional a incidência do ICMS nas referidas transferências e garantiu a manutenção dos respectivos créditos das operações anteriores.

Contudo, dúvidas remanescem sobre a interpretação e a compatibilidade das novas regras com o decidido na ADC 49, especialmente em relação à obrigatoriedade da transferência de créditos e da aplicação do regime de ICMS/ST.

Em primeiro lugar, é inconstitucional a obrigatoriedade da transferência dos créditos prevista no Convênio 178 pois, ao tratar do tema na ADC 49, o STF definiu que a manutenção e aproveitamento dos créditos é um direito dos contribuintes e não uma obrigação. Isso fica evidente no voto do ministro Dias Toffoli, quando assevera que o STF deveria reconhecer que os sujeitos passivos têm o direito de transferir tais créditos caso não fosse publicada lei complementar.

Na mesma linha foi o entendimento do ministro Barroso, anotando que para a efetividade da não cumulatividade é necessário que “se faculte aos sujeitos passivos a transferência de créditos entre os estabelecimentos de mesmo titular”.

Sendo assim, o STF e, por consequência lógica, a própria Constituição Federal não vinculam a manutenção dos créditos das operações anteriores à obrigatoriedade de sua transferência ao estabelecimento que recebe mercadorias remetidas por filial.

Desse modo, não há espaço para interpretar as regras da LC 204 no sentido de que a transferência dos créditos é obrigatória, já que a ADC 49 dispôs de forma diversa e, nessa medida, não parece haver dúvidas de que o Convênio 178 é inconstitucional.

É válido observar também que, na prática, a sistemática prevista pelo Convênio 178 mantem tudo como era antes da decisão da ADC 49, já que permite a “tributação” da transferência de mercadorias se a alíquota dos créditos na entrada for menor do que a interestadual utilizada para cálculo do crédito a ser transferido. Isso acaba por gerar um valor a pagar na apuração do ICMS, com base em um fato (transferência de mercadorias) que não é hipótese de incidência do imposto.

A regra convenial também pode resultar na impossibilidade de que o crédito da entrada seja transferido integralmente ao estabelecimento recebedor das mercadorias, nos casos em que a alíquota na entrada for maior do que a interestadual utilizada para cálculo do crédito a ser transferido.

Essas hipóteses conflitam com a ADC 49 e com a própria LC 204, que não permitem tais situações, o que reforça a inconstitucionalidade e ilegalidade do convênio. Em vista disso, só é possível concluir que a transferência dos créditos, na movimentação de mercadorias entre filiais, não é obrigatória.

A não obrigatoriedade da transferência dos créditos resulta na conclusão de que ao contribuinte é permitido transferir o montante de crédito que lhe convier na movimentação de mercadorias entre filiais, limitado aos percentuais das alíquotas interestaduais, sendo garantido o aproveitamento da diferença de crédito no estabelecimento de origem. Essa é a única interpretação possível para as regras trazidas pela LC 204.

Ressalte-se ainda a impossibilidade de aplicação do regime de ICMS/ST nas transferências de mercadorias entre filiais, já que a Constituição Federal prevê que a condição de responsável pelo pagamento de imposto será atribuída a sujeito passivo de obrigação tributária.

No caso da transferência de mercadorias entre filiais não há obrigação tributária, de forma que o estabelecimento que transfere mercadorias não é sujeito passivo do ICMS; logo, por expressa vedação constitucional, tal estabelecimento não pode ser eleito como responsável pelo recolhimento de qualquer valor a título de ICMS/ST.

Além disso, a ausência de ICMS na transferência de mercadorias impossibilita a implementação da sistemática de cálculo do ICMS/ST, já que não haverá valor de ICMS próprio a ser deduzido daquele devido por substituição tributária.

Por essas razões, é inconstitucional e ilegal a norma do Convênio 225, determinando que o cálculo do ICMS/ST levará em conta o valor do crédito transferido: a uma, porque a Constituição Federal não autoriza a aplicação do regime de substituição tributária nesse caso; a duas, porque a Lei Kandir determina que o cálculo do ICMS/ST levará em conta o valor do imposto próprio do substituto, montante esse inexistente na transferência de mercadorias.

Os aspectos aqui trazidos demonstram que a obrigatoriedade dos créditos nas transferências de mercadorias entre filiais e a aplicação do ICMS/ST nesses eventos não traduzem, dos pontos de vista constitucional e legal, o quanto decidido pelo STF na ADC 49 e o previsto na LC 204. Tais fatos, além de não solucionarem a controvérsia em definitivo, ainda certamente gerarão mais discussões judiciais, adiando a definição de um tema que interessa a muitos contribuintes.

Cassiano Inserra Bernini e Enio Zaha são, respectivamente, advogado e sócio no escritório Gaia Silva Gaede Advogados, em São Paulo Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

FONTE: VALOR ECONÔMICO – POR CASSIANO INSERRA BERNINI E ENIO ZAHA

 

 

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