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UMA INTERPRETAÇÃO PARA A INDREI Nº 82/22

9 de janeiro de 2023

Recomenda-se deixar claro que a prestação de serviço não é permitida como forma de contribuição para o capital

O presente artigo se originou dos profícuos debates entre os professores Ronald Sharp Jr., Gladston Mamede, Henrique Arake, Paulo Palhares e Giovani Magalhães, a partir da recente edição da Instrução Normativa nº 88/22, do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI). A norma segue o esforço daquele órgão em dinamizar e modernizar o direito societário brasileiro, nomeadamente no que diz respeito ao registro público. No entanto, uma parte da norma chama atenção. No anexo que cuida das sociedades limitadas, lê-se: “4.3.6. Contribuição ao capital social com prestação de serviços. É lícito que o sócio preste serviços à sociedade, em caráter oneroso ou não, ainda que não ostente a condição de administrador”.

Aparentemente, a norma conflita com o disposto no parágrafo 2° do artigo 1.055 do Código Civil: “Na sociedade limitada, é vedada contribuição que consista em prestação de serviços”. Em farto, na limitada, todos os sócios devem contribuir com recursos com expressão econômica (dinheiro, créditos ou bens). Os sócios são investidores e nenhum deles tem o direito ou a obrigação de contribuir com a prestação de serviços.

Recomenda-se deixar claro que a prestação de serviço não é permitida como forma de contribuição para o capital.

Mas é possível ler a norma apenas como a aceitar que o sócio trabalhe a bem do objeto social. Isso inclui a prestação de serviços que decorra da condição de sócio, embora a sociedade limitada tenha sido pensada de forma diversa: a posição do sócio (não administrador) é de investidor. Não lhe cabe trabalhar para sociedade, embora sejam lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização, de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que não estejam presentes os elementos típicos do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação, como se deixou claro na Reclamação nº 56.499, de 19 de dezembro, item 12, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. E também pode ser contratado como empregado.

A fragilidade do sistema revela-se. Na prática do dia a dia, transformamos sociedades limitadas em sociedades simples ou em nome coletivo, nas quais o sócio atua pessoalmente na realização do objeto social. É por isso que juízes se sentem tão à vontade para avançar sobre o patrimônio do sócio: a ideia de que é preciso proteger o investimento se desfaz diante da constatação de que o que se tem é atuação pessoal, ainda que em nome da sociedade. Então, melhor estaria a norma assim: “É lícito que o sócio preste serviços à sociedade, em caráter oneroso ou não, duradouro ou eventual, ainda que não ostente a condição de administrador, vedada a previsão de que tal serviço seja usado para integralizar o capital social”.

Na realidade cotidiana, sócios trabalham para a realização do objeto social. Na esmagadora maioria dos casos, não são meros investidores – como os três sócios da transportadora que tocam as vans para fazer entrega. Considerando o que efetivamente vivemos, a norma pode ser lida de forma interessante. É do interesse de toda a sociedade a execução do objeto social. Nessa linha os sócios podem atuar na realização do objeto social, ou seja, prestar serviços à sociedade, ainda que gratuitamente. Ainda que não seja o administrador, o sócio não precisa ser passivo.

Há várias sociedades limitadas em que a contribuição do sócio é essencial para a execução do objeto social. A sociedade limitada não é uma sociedade anônima simplificada. É tipo societário com lógica diversa.

Portanto, o sócio pode se obrigar, no contrato social, à prestação de serviços, desde que integralize o capital social com recursos com expressão econômica (dinheiro, créditos ou bens). Por exemplo, sociedades de médicos, de contadores, um restaurante cuja sociedade é formada por um chef e um sommelier. A contratação é possível e ele está obrigado a cumprir o contratado.

É possível que o DREI queira deixar evidente que a prestação de serviços do sócio à sociedade limitada não se confunde com a (ilegal) contribuição para formação do capital social com tais serviços. Dá-se transparência aos sócios e a terceiros que a sociedade considera legítima tais contratações e prestações de serviços, evitando-se discussões sobre conflito de interesses. A intenção seria correta, mas a redação cria um grande desafio e gera confusões. Ainda mais diante do título contribuição para o capital social. O rótulo enviesa a interpretação no sentido errado.

Se a intenção é criar sócio de serviço, a opção não é por limitada, mas a sociedade simples pura, prevendo que uns sócios são prestadores de capital e outros, de serviços (artigo 997, IV e V, do Código Civil). Ou a sociedade em nome coletivo com aplicação supletiva das normas da sociedade simples (artigo 1.040). O que não se aceita é forçar um tipo societário a incluir previsão de outro. Existe um cardápio de tipos societários para atender a interesses variados.

Uma revisão do texto da instrução normativa recomenda-se. Deixar claro que a prestação de serviço não é permitida como forma de contribuição para o capital, ainda que não seja proibido que sócios trabalhem para a sociedade de maneira diversa da administração. Enquanto essa nova redação não vem – se vier -, a interpretação do item terá que ser de que os sócios podem se obrigar, mesmo no contrato social, a contribuir com sua atuação pessoal para com a realização do objeto social. Mas isso desde que tenham se comprometido a integralizar suas quotas em dinheiro, crédito ou bens com expressão pecuniária e que não esteja caracterizada a subordinação típica das relações de trabalho.

Ronald Sharp Jr., Gladston Mamede e Henrique Arake são, respectivamente, mestre em Direito pela UERJ; doutor em Direito pela UFMG; e professor do UniCEUB.

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações.

FONTE: Valor Econômico – Por Ronald Sharp Jr., Gladston Mamede e Henrique Arake

 

 

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