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STF E O DIREITO DO CONTRIBUINTE EM CRIMES FISCAIS

6 de maio de 2022

A decisão do Supremo consagra o exercício da ampla defesa e do contraditório no procedimento fiscal.

No dia 10 de março, o Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4980, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), que buscava a declaração de inconstitucionalidade do artigo 83 da Lei nº 9.430/1996.

A norma questionada estabelece que a representação fiscal para fins penais relativa a crimes contra a ordem tributária e contra a Previdência Social somente poderá ser encaminhada ao Ministério Público após o encerramento da discussão sobre a exigência fiscal do crédito tributário no âmbito administrativo.

A decisão do Supremo consagra o exercício da ampla defesa e do contraditório no procedimento fiscal

A PGR se insurgia contra uma parte do artigo, sustentando que, no caso dos denominados crimes formais – aqueles que não dependem da ocorrência do resultado pretendido pelo autor para se consumarem – o envio da representação fiscal para fins penais ao Ministério Público prescindiria da imposição de se aguardar o término do processo administrativo fiscal.

Na prática, a decisão do STF representa uma relevante vitória ao contribuinte, por confirmar que, sem o esgotamento da via administrativa, o Ministério Público não poderá oferecer denúncia nem tampouco representar pela instauração de inquérito policial por crimes tributários e/ou previdenciários, ainda que alegue ser o crime formal.

O precedente vem em boa hora diante do uso cada vez mais corriqueiro do Direito Penal como instrumento de cobrança ou pressão para o contribuinte quitar o tributo supostamente devido. A decisão garante que o contribuinte não seja implicitamente coagido a efetuar o pagamento de débito tributário ou previdenciário cuja existência e valor estejam pendentes de decisão na esfera administrativa.

É inaceitável que o autuado se sinta forçado a abrir mão de seu direito de defesa no procedimento fiscal, diante de intimidação naturalmente exercida com a simples existência de uma investigação criminal. São comuníssimos os casos nos quais o contribuinte opta por efetuar um pagamento que não se sabe devido, muitas vezes decorrente de atuações abusivas ou equivocadas, apenas para se ver livre da condição de investigado ou acusado na esfera criminal.

Aliás, houve uma opção legislativa por admitir o pagamento do débito tributário como meio de extinguir a punibilidade. O Estado deve, portanto, honrar essa escolha e tratá-la como de fato é, um direito do contribuinte. Ao pretender declarar parte do artigo de lei inconstitucional, buscava a ADI fazer descer goela abaixo uma necessidade de pagamento a partir da ameaça de um processo criminal anterior ao esgotamento das possibilidades de defesa administrativa, intenção muito distante da política criminal desenhada pelo legislador e pelo próprio STF ao editar a Súmula Vinculante nº 24.

O esperançoso precedente vai ao encontro do entendimento já consolidado na Corte Suprema, no sentido de que somente se consuma o crime contra a ordem tributária com a constituição definitiva do crédito, o que se dá com o esgotamento da via administrativa, independentemente de ser crime formal ou material.

Além do mais, a decisão confirma que não se pode subverter o princípio constitucional da presunção de inocência, com o expediente costumeiro de se classificar automaticamente todo contribuinte autuado como criminoso, sonegador de imposto.

É, de fato, preocupante a forma açodada e sem critérios com que o Ministério Público tem requisitado a instauração de inquéritos policiais ou mesmo oferecido denúncias sem apurar os fatos, e deixando de avaliá-los de forma cuidadosa à luz dos conceitos mais básicos do Direito Penal.

Tal prática não possui amparo legal, pois em matéria criminal tributária somente é possível cogitar de delito quando presente o dolo, isto é, a vontade livre e consciente de suprimir ou reduzir o pagamento de tributos mediante fraude. Daí porque a mera inadimplência tributária não pode de modo algum ser equiparada ao cometimento de ilícito penal.

As consequências dessa responsabilização automatizada impactam diretamente as pessoas físicas, pois o direito penal não admite a responsabilização da pessoa jurídica, à exceção dos casos de crimes ambientais. Nesse sentido, quando se condiciona a persecução penal à confirmação definitiva da autuação pelo órgão administrativo isso significa proteger de precipitadas consequências criminais desde o profissional liberal que aufere rendimentos com aluguéis até o executivo de uma empresa que se socorre de planejamento fiscal para otimizar sua atividade.

A decisão do STF privilegia ainda a segurança jurídica e colabora para o bom funcionamento do Judiciário. Se o débito ainda está sendo discutido na esfera administrativa, há a possibilidade de que a autuação venha a ser cancelada ou mesmo reduzida. Ao condicionar a persecução penal ao encerramento da discussão administrativa, evita-se a instauração de uma infinidade de procedimentos criminais inúteis fundados em débitos tributários que, no fim, venham a ser desconstituídos na esfera fiscal.

Mais do que evitar acusações precipitadas e temerárias, a decisão ainda consagra o exercício da ampla defesa e do contraditório no procedimento fiscal, assegurando o cumprimento rigoroso de garantias da Carta da República em demonstração de bom senso e prudência.

Como última ratio – imperativo do princípio da intervenção mínima -, o Direito Penal somente se legitima nas hipóteses que realmente mereçam reprovação penal. Assim, ao julgar improcedente a ADI nº 4980, o Supremo trouxe coerência ao sistema, resguardando o papel do Direito Penal de garantidor de direitos fundamentais, essência do Estado Democrático de Direito.

FONTE: Valor Econômico – Por Camila Austregesilo Vargas do Amaral

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