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O DIFAL E A DURADOURA VIOLAÇÃO À CONSTITUIÇÃO

10 de março de 2022

Por todo ângulo que se analise, percebe-se no novo artigo 20-A da Lei Kandir uma fuga velada à neutralidade tributária.

Recentemente, foi promulgada a esperada Lei Complementar (LC) nº 190/2022, que objetivava suplantar as discussões em torno da cobrança do Difal do ICMS nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais da Emenda Constitucional nº 87/15, em decorrência do julgamento do RE 1.287.019 e da ADI 5.469 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No entanto, se por um lado a lei encerra o debate sobre a necessidade de edição de lei complementar para regulamentar a matéria, por outro, seu texto viola princípios basilares da sistemática de incidência do ICMS.

A primeira discussão, mais evidente, diz respeito à eficácia temporal da LC nº 190/2022 e das legislações estaduais dela decorrentes, diante da inconsistência entre as datas de publicação e cláusulas de produção de efeitos das normas, que incorrem em inobservância dos princípios da anterioridade anual ou nonagesimal.

Para além dessa discussão, é fundamental que os contribuintes se atentem à outra questão ainda mais sensível: o artigo 20-A, acrescido pela LC nº 190/2022 à Lei Kandir, viola diversos princípios constitucionais, sobretudo o da não cumulatividade e não discriminação tributária.

Por todo ângulo que se analise, percebe-se no novo artigo 20-A da Lei Kandir uma fuga velada à neutralidade tributária.

O artigo 20-A determina que “o crédito relativo às operações e prestações anteriores deve ser deduzido apenas do débito correspondente ao imposto devido à unidade federada de origem”. Em paralelo, no entanto, a LC nº 190/2022 traz que a base de cálculo do Difal é aferida mediante a alíquota efetiva do Estado de destino (parágrafo 7º do artigo 13 da Lei Kandir) e o remetente assume a condição de “contribuinte” (i.e., artigo 4º, parágrafo 2º), caso o adquirente não seja contribuinte do ICMS (inciso II).

Dito de outro modo, a LC nº 190/2022 (i) designa o remetente como contribuinte do Estado de destino, em completa (e arbitrária) extensão da competência territorial do ICMS; (ii) exige a apuração da base de cálculo do Difal com base na alíquota do Estado de destino; mas (iii) limita o aproveitamento dos créditos das operações anteriores ao ICMS devido ao Estado de origem – apesar de exigir do remetente, em relação ao Estado de destino, o mesmo ônus que se impõe a um contribuinte regular ali sediado.

O impacto do novo artigo 20-A da Lei Kandir é de suma relevância aos contribuintes, sobretudo daqueles do e-commerce, pois a venda para clientes em outro Estado será, indiretamente, “penalizada”, na medida em que essas operações importarão na cumulação de elevados montantes de crédito do ICMS, o que acarreta a perda de competitividade e traz importantes reflexos negativos no fluxo de caixa das empresas.

A violação ao princípio da não cumulatividade é latente. É de se lembrar que a Constituição estabelece em seu artigo 155, parágrafo 2º, II, que o ICMS é um imposto não cumulativo e o imposto devido em uma operação deve ser compensado com o montante cobrado nas anteriores, excetuando apenas as hipóteses de isenção e não incidência, que claramente não é o caso do Difal. Essa não cumulatividade abrange toda a cadeia, independentemente do destino e origem da mercadoria.

O STF já se pronunciou sobre situação semelhante no julgamento da ADI 4.623. Ao analisar legislação mato-grossense que impedia a apropriação de créditos do Difal sobre bens destinados ao ativo imobilizado, a relatora, ministra Carmen Lúcia, entendeu que o regime do Difal não comporta uma distinção de lançamento e “autonomia de etapas”, sendo tão somente um mecanismo de “justiça tributária”, para repartição das receitas entre os Estados. Aliás, como ressaltado pela relatora, o agravamento às operações interestaduais resulta em favorecimento das operações internas e de importação – situação que merece ser rechaçada do ordenamento jurídico.

O que o Difal não pode fazer, no entender da ministra, é justamente o que faz a LC nº 190/2022, ao impor limites à não cumulatividade em hipótese não prevista na Constituição, conduzindo a uma pretensa “autonomia de etapas” entre o ICMS devido ao Estado de origem e o devido ao Estado de destino e, com isso, gerando ao remetente uma “diferenciação de lançamentos” e aumento da carga tributária.

Efetivamente, a LC nº 190/2022 vai na contramão do que se compreende por “justiça tributária”, que depende, minimamente, da observância às regras constitucionais impostas ao ICMS e, dentre elas, por evidente, a não cumulatividade.

Mencionada limitação ao aproveitamento de créditos também provoca flagrante desequilíbrio econômico e concorrencial, na medida em que há uma desvantagem econômica nas operações interestaduais realizadas pelos contribuintes que destinam bens a consumidores finais, sobreonerando essas aquisições em detrimento das demais, em clara violação ao princípio da livre concorrência, isonomia e não discriminação tributária.

Por todo ângulo que se analise, percebe-se no novo artigo 20-A da Lei Kandir uma fuga velada à neutralidade tributária. Ainda que se pretenda justificar tal fato na necessária alocação de recursos públicos aos Estados mais prejudicados com a venda on-line, é certo que não se pode, com isso, aumentar carga tributária, tolher direitos dos contribuintes ou fazer vistas-grossas a preceitos básicos da Constituição Federal.

E nem se alegue que a autorização de compensação do Difal no destino com eventuais créditos de ICMS dos remetentes esvaziaria o propósito da LC nº 190/2022 de repartição de receita tributária entre os Estados, pois, a uma, o princípio da não cumulatividade, em situações regulares (que não a do Difal), já faz com que Estados de destino tenham que se curvar à apropriação de créditos de ICMS oriundos de aquisições interestaduais por parte de seus contribuinte; e, a duas, a arrecadação do ICMS já pressupõe débitos menos créditos e tolher a possibilidade dessa subtração não gera ao Estado “arrecadação”, em sua definição, mas, no limite, “enriquecimento ilícito”.

Fica claro, portanto, que o tema envolvendo o Difal da EC nº 87/15 está longe de estar pacificado com a LC nº 190/2022 e o julgamento do STF do RE 1.287.019 e da ADI 5.469. Na verdade, estamos apenas no começo.

FONTE: Valor Econômico – Por Virginia Pillekamp

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