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AS LIÇÕES DA MODULAÇÃO DE EFEITOS

31 de janeiro de 2022

A modulação, da forma como realizada, gera uma corrida ao Judiciário, tornando-o mais lento como um todo.

A Constituição Federal é a norma jurídica fundamental do ordenamento jurídico brasileiro. É ela, portanto, quem dá fundamento de validade aos demais atos normativos, sendo esse o racional que deu origem à ideia de que a norma violadora da Constituição, formal ou materialmente, deve ser declarada nula desde a origem, como se nunca tivesse existido (eficácia retroativa natural da declaração de inconstitucionalidade). Sem dúvida, o sistema jurídico não pode conviver com qualquer lei que ofenda a sua norma fundamental superior – a Constituição.

A aplicação de efeitos retroativos em todo e qualquer caso de declaração de inconstitucionalidade, porém, poderia levar à instabilidade jurídica. Sendo assim, em nome da previsibilidade/confiabilidade dos atos estatais em geral, criou-se a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade. A ideia é que não sejam aplicados os naturais efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade se houver razões de segurança jurídica ou de interesse social que justifiquem tal postura (artigo 27 da Lei nº 9.868/1999 c.c. artigo 927, parágrafo 3º, do CPC).

A modulação, da forma como realizada, gera uma corrida ao Judiciário, tornando-o mais lento como um todo.

Logo, tal medida só pode ser absolutamente excepcional, pois significa afastar os naturais efeitos decorrentes da nulidade absoluta da norma inconstitucional. Apesar de a Constituição definir expressamente quais fatos podem ser tributados é comum que tais normas constitucionais sejam desrespeitadas.

Por exemplo, segundo a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal (STF), o legislador desrespeitou a Constituição quando autorizou a cobrança: a) do diferencial de alíquotas do ICMS sem que, antes, o tema fosse regulamentado em lei complementar nacional (tema 1093 de repercussão geral); e b) de ICMS em patamar mais gravoso para serviços de telecomunicação e de energia elétrica, contrariando o princípio constitucional da seletividade (tema 745 de repercussão geral). Ambos os casos foram julgados ao longo do ano de 2021.

E a questão que se pode levantar é a seguinte: o que os casos mencionados têm em comum? Nesses casos, o STF deixou de aplicar os naturais efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade, com a ressalva, apenas, das “ações judiciais em curso”, pensando em proteger os cofres públicos diante da atual crise econômica decorrente da pandemia do coronavírus. Além disso, o STF deu ao legislador ordinário um prazo extra para se adaptar à sua decisão: a) no caso do diferencial de alíquotas do ICMS, a inconstitucionalidade só valeria a partir de 2022; e b) no caso da seletividade do ICMS, a decisão só valerá em 2024.

Em um contexto no qual os julgamentos demoram anos (em alguns casos, até décadas) para se encerrar, com a modulação dos efeitos, o Fisco ganha uma proteção extra (além da prescrição), muito embora tenha cobrado tributo indevido por anos (até décadas).

Assim, podemos extrair algumas lições dessa situação. Em primeiro lugar, o caráter educativo (no mal sentido) que ela traz, já que gestores públicos podem criar tributos inconstitucionais e cobrá-los por anos a fio sabendo que, se um dia tal cobrança for declarada inconstitucional, os cofres públicos terão uma proteção adicional (além da prescrição), qual seja, a modulação de efeitos. Além disso, para os contribuintes, fica o “dever” de entrar com qualquer medida judicial sobre inconstitucionalidade tributária, a fim de se proteger de eventual modulação.

Em um quadro de crise econômica e de pandemia mundial, é compreensível que o STF queira proteger o erário. Acontece, todavia, que essa proteção que pensa apenas no interesse financeiro do Estado, a curto e médio prazo, pode gerar efeitos danosos a longo prazo. A pedagogia da modulação acaba ensinando aos gestores públicos que, na prática, compensa cobrar tributo indevido, sobretudo porque: a) muitos contribuintes sequer buscam a recuperação do indébito, pelos baixos valores envolvidos; e b) há certa resistência do STF em aplicar a modulação para proteger os contribuintes.

É o caso, por exemplo, da discussão sobre a não incidência de contribuições previdenciárias sobre o terço de férias (tema 985 de repercussão geral): contrariando histórica jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), firmada com efeito vinculante em 2014, o STF declarou a validade da cobrança sem proteger os contribuintes que, durante anos, confiaram na decisão do STJ sobre o tema, pela invalidade da cobrança, em uma situação que, inclusive, é causa legal expressa para que haja a modulação de efeitos (artigo 927, parágrafo 3º, do CPC). Há pedido de modulação nesse caso, mas se nota certa resistência em deferi-lo. Para o Fisco, então, fica o ensinamento de que a “inconstitucionalidade compensa”.

Do lado dos contribuintes, a postura atual do STF é um incentivo à litigiosidade, na contramão do espírito do CPC/2015 e da nova relação entre Fisco e contribuinte, pautada em instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos (negócio jurídico processual, transação tributária etc). A modulação, da forma como realizada, gera uma corrida ao Judiciário, tornando-o mais lento como um todo.

Em resumo, a lição principal que fica da aplicação desmedida do instituto da modulação de efeitos em matéria tributária é a seguinte: irresponsabilidade jurídica do Estado na criação de tributos e aumento da litigiosidade. Nesse cenário, é tempo de tratar a modulação de efeitos como ela foi pensada originalmente. Ou seja, como uma medida de cabimento absolutamente restritivo e excepcional.

Andre Henrique Azeredo Santos é sócio do FAS Advogados Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: Valor Econômico – Por Andre Henrique Azeredo Santo

 

 

 

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