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CRÉDITO DE ICMS SOBRE ENERGIA USADA NA PANIFICAÇÃO E PROCESSAMENTO DE ALIMENTOS

11 de junho de 2021

Qualquer estudo investigativo que tenha por objetivo identificar as fontes de complexidade do ICMS irá se deparar com a questão dos créditos para compensação.

Qualquer estudo investigativo que tenha por objetivo identificar as fontes de complexidade do ICMS irá se deparar com a questão dos créditos para compensação, dando concretude ao princípio da não cumulatividade do imposto [1], matéria que até hoje atormenta os contribuintes e é a principal causa de litigiosidade nos tribunais administrativos e judiciais.

Já de início, cabe advertir que este campo nebuloso não se deve à imprecisão normativa, mas principalmente às oscilações e vaguezas das decisões judiciais, nem sempre alinhadas com a legislação específica, conforme veremos mais adiante.

No presente texto faz um corte metodológico para enfocar o crédito com relação à aquisição e consumo de energia elétrica nas atividades produtivas, em especial, o consumo pelos estabelecimentos de supermercados, nos seus setores de panificação, açougues e refrigeração, nos quais se desempenham atividades de industrialização.

A Lei Complementar 87/96, em seu artigo 33, prevê o direito ao crédito do ICMS na entrada de energia elétrica nas seguintes situações:

“artigo 33. Na aplicação do artigo 20 observar-se-á o seguinte:
(…)
II  somente dará direito a crédito a entrada de energia elétrica no estabelecimento:   
a) quando for objeto de operação de saída de energia elétrica;  
b) quando consumida no processo de industrialização;  
c) quando seu consumo resultar em operação de saída ou prestação para o  exterior, na proporção destas sobre as saídas ou prestações totais”.

Conforme já alertado na delimitação do tema, interessa para a presente análise o crédito previsto no consumo da energia elétrica no processo de industrialização, lembrando que não há previsão legal para o crédito na atividade comercial ou de prestação de serviços, o que parece um contrassenso, mas não será objeto desta reflexão.

Como primeira observação, cabe lembrar que a norma menciona processo e não estabelecimento ou empresa industrial, o que permite concluir que o critério habilitador do crédito é a atividade de industrialização, que pode ser exercida em qualquer empresa, independentemente do seu objeto social: industrial, comercial ou até de prestação de serviços, desde que no estabelecimento se desenvolva uma atividade que se ajuste à definição legal de industrialização, cabendo ao contribuinte o ônus da prova da parte da energia empregada na atividade industrial, conforme regramento na legislação de cada Estado [2].

Portanto, um estabelecimento comercial, assim enquadrado e registrado formalmente, caso desempenhar uma atividade de industrialização em determinado setor, pode-se beneficiar do crédito com relação à energia consumida nesta unidade de transformação, desde que dimensionada e comprovada a parte consumida neste setor. Imaginamos uma cooperativa do agronegócio que, predominantemente, comercializa produtos agrícolas, mas que também promove alguma industrialização de seus produtos. Nessa hipótese, haverá de se garantir o crédito com relação à energia elétrica empregada na atividade industrial. Esta é a letra literal da lei.

No entanto, o Poder Judiciário, em especial o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tem se posicionado pela impossibilidade do crédito com relação à atividade de panificação e congelamento de alimentos desenvolvida no estabelecimento de supermercado, sob a alegação de que essas atividades não se enquadrariam no conceito de industrialização, segundo os critérios conceituais estabelecidos pela legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), norma essa utilizada de forma subsidiária, já que a Lei Complementar nº 87/96 não estabeleceu nenhum parâmetro conceitual de atividade de indústria. O Judiciário também tem adotado como fundamentos para vedar o crédito nos estabelecimentos de supermercado, a sua atividade comercial predominante, o que, no entanto, vem de encontro com a legislação. Este entendimento tem sido seguido também pelos tribunais administrativos de maneira geral, vedando o direito ao crédito com relação a essas atividades de industrialização nas dependências dos supermercados.  

O regulamento do IPI, aprovado pelo Decreto nº 7. 212/2010, em seu artigo 4º, fixa as condições caracterizadoras de industrialização para efeito deste tributo federal. Segundo esse dispositivo, “caracteriza industrialização qualquer operação que modifique a natureza, o funcionamento, o acabamento, a apresentação ou a finalidade do produto, ou o aperfeiçoe para consumo, tal como”. Nos incisos I a V são descritos os processos operacionais dessa atividade industrial.

Com base na norma regulamentar transcrita, não haveria dúvidas sobre a caracterização da atividade industrial desenvolvida pela panificação e demais atividades de processamento de alimentos, com reflexo no direito ao creditamento do ICMS relativo à energia elétrica nela consumida.

Ocorre, no entanto, que o artigo 5º, do mesmo regulamento, estabelece algumas exclusões, não considerando industrialização o preparo de produtos alimentares nas condições estabelecidas (I, “a”).

” Artigo 5º — Não se considera industrialização:
 o preparo de produtos alimentares, não acondicionados em embalagem de apresentação:
a) na residência do preparador ou em restaurantes, bares, sorveterias, confeitarias, padarias, quitandas e semelhantes, desde que os produtos se destinem a venda direta a consumidor; ou
(…)”.

É com base nessa norma excludente que o STJ, ao apreciar o REsp. nº 1.117.139/RJ, representativo de controvérsia (artigo 543-C, do CPC), do relator Luiz Fux, DJe 18/02/2010, negou o direito ao crédito com relação à energia elétrica consumida diretamente no setor de panificação e congelamento de alimentos no estabelecimento comercial (supermercados), fixando a seguinte tese:

“As atividades de panificação e de congelamento de produtos perecíveis, ‘rotisseria e restaurante’, ‘açougue e peixaria’ e ‘frios e laticínios’ (…) por supermercado não configuram processo de industrialização de alimentos, (…) razão pela qual inexiste direito ao creditamento do ICMS pago na entrada da energia elétrica consumida no estabelecimento comercial”.

Esse mesmo entendimento tem sido mantido no julgamento do AgRg no RMS 44924/SC, DJe 23/04/2014, sob a eficácia vinculativa do acórdão proferido em rito representativo de controvérsia.

Provocado através do Recurso Extraordinário nº 588.954/RG, o STF reconheceu a matéria como repercussão geral, fixando o tema nº 218: “Direito de supermercado a crédito do ICMS relativo à energia elétrica utilizada no processo produtivo de alimentos que comercializa.”Até a presente data ainda não houve julgamento do “leading case”.

Faz-se oportuno levantar uma questão a respeito da abrangência das decisões do STJ no rol dos estabelecimentos em que a exclusão do conceito de industrialização se aplica, nos termos da legislação do IPI. O fato é que as decisões já proferidas por aquela Corte fazem menção expressa à atividade comercial realizada nos supermercados, nos quais operam as panificadoras, açougues, refrigeração ou outras formas de processamento de alimentos; o tema fixado pelo STF, na admissibilidade do RE nº 588.954/RG, também se refere ao supermercado, o que poderia sugerir que a vedação do crédito baseada na excludente legislativa se restringiria aos estabelecimentos supermercadistas. Todavia, a excludente na definição de industrialização se aplica a todos os estabelecimentos que se enquadram na disposição do artigo 5º, I, “a”, do regulamento do IPI, incluindo as padarias, açougues, peixarias como estabelecimentos autônomos, fora das dependências de qualquer supermercado ou assemelhado.

Portanto, atualmente essa é a orientação vigente com relação à matéria. Todas as atividades que se ajustam à norma excludente da legislação do IPI (artigo 5º, I, “a”, RIPI), desenvolvidas nas dependências de supermercados ou em estabelecimento autônomo, ainda que sejam de transformação de matéria-prima em um produto final, não são consideradas de industrialização, e por consequência, a energia elétrica nelas consumida não gera direito ao crédito do ICMS, enquanto não houver o julgamento do STF em rito de repercussão geral, fixando orientação diversa.

Neste artigo se pretende aprofundar o debate sobre o tema para verificar a possibilidade de uma orientação diferente daquela adotada pelo STJ, no sentido de reconhecer o direito ao crédito com relação às operações de aquisição de energia elétrica aqui enfocada, em observância ao princípio da não cumulatividade, a despeito da exclusão conceitual da legislação de industrialização para efeitos do IPI, considerando ainda que o parágrafo único do artigo 46, do CTN, Lei nº 5.172/66, estabelece que “Para os efeitos deste imposto, [IPI] considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo.” Adverte-se que esta lei complementar não contempla nenhuma exclusão conceitual, nos moldes da legislação do IPI. E a definição do fato gerador é matéria restrita à lei complementar, nos termos do artigo 146, III, “a”, do CTN; não tem competência o legislador ordinário para alterar componentes materiais da hipótese de incidência, nem mesmo pela via da redefinição da atividade de industrialização. 

O debate se concentra na forma de receptividade da norma estranha ao ICMS, para o emprego subsidiário no conceito de industrialização. Qual é a norma específica do IPI que deve migrar para a normatização do ICMS como definidora da atividade de industrialização, com implicação no direito ao crédito do imposto? O intérprete da legislação do ICMS se valerá somente do componente normativo de contorno da definição da atividade industrial ou deverá também considerar a cláusula exclusiva, que numa ficção jurídica, não considera atividade industrial o que na verdade o é, por uma razão casuística para efeito de IPI?

Eis o problema posto. Segue a análise.

No Direito positivo é usual e legítimo o recurso ao uso subsidiário de legislação estranha ao subsistema, ao se verificar, no caso concreto, omissões na legislação a ser aplicada. A norma regradora nacional do ICMS não oferece conceito de industrialização, mas dele se utiliza para equacionar questões relacionadas ao crédito do imposto. O IPI é um imposto que tem como um dos componentes de sua materialidade de incidência a industrialização dos produtos, o que sugere a adequação na busca subsidiária desse conceito para a integração da legislação do ICMS.

É questionável, no entanto, considerar a norma excludente da definição de industrialização pela legislação do IPI (artigo 5º, I, “a” RIPI) também para a integração da legislação do ICMS. O legislador do imposto federal estabeleceu essa exclusão atendendo a um propósito especifico do IPI, criando uma forma de renúncia fiscal com relação a este imposto, afinal, a desqualificação da atividade industrial afasta a incidência do IPI. Essa exclusão é uma ficção jurídica, visto que estabelece uma afirmativa na norma que não se confirma no mundo factual. A atividade de panificação é tipicamente industrial, envolvendo a transformação de matéria-prima em produto industrializado. Para tal atividade sequer haveria necessidade de pesquisar o conceito de industrialização na legislação do IPI; a atividade industrial é evidente e se ajusta aos contornos conceituais do parágrafo único do artigo 46, do CTN. O uso subsidiário da legislação do IPI, neste ponto particular, é prescindível para obter o conceito de industrialização no plano o ICMS. Assim sendo, essa forma subsidiária integrativa opera como meio de constringir, de forma indevida, o direito ao crédito do ICMS, violando o princípio da não cumulatividade do imposto.

Pela ideia desenvolvida, deve migrar para o plano do ICMS a norma externa estritamente necessária para a definição da atividade industrial, na sua percepção técnica, sem as ressalvas que se constituem em ficção jurídica, que ostentam objetivos específicos de renúncia fiscal do IPI, que não interessam para fins de ICMS, em especial, para equacionar questões relativas ao crédito.  

Adotando-se uma interpretação finalística da norma, parece evidente que o legislador do ICMS, ao estabelecer os critérios do crédito a partir da atividade de industrialização, teve em mente privilegiar o processo de agregação de valor na atividade fabril, independentemente do local ou dependência de sua ocorrência; não cogitou o legislador nas exclusões casuísticas na definição de industrialização pela legislação do IPI.    

De forma resumida, deve o aplicador da legislação ICMS recorrer à definição material da atividade industrial prevista no regulamento do IPI, na sua concepção técnica (artigo 4º, incisos I a V), em alinhamento com a definição do próprio Código Tributário Nacional (CTN) (artigo 46, parágrafo único), sem considerar a cláusula excludente (artigo 5º, I, “a” RIPI), que é de aplicação específica de renúncia fiscal para o imposto federal, não fazendo parte da definição técnica de atividade de industrialização, que interessa para a aplicação da legislação do ICMS, na questão relacionada ao crédito.

Portanto, pela ótica aqui exposta, recorrendo-se a uma análise mais detida em alinhamento com o princípio da não cumulatividade do imposto, conclui-se pelo direto ao crédito do ICMS relativo à aquisição e consumo de energia elétrica nas atividades de industrialização, tais como padarias ou qualquer forma de processamento de alimentos em supermercados ou padarias, sem considerar a ressalva de atividade de industrialização prevista no regulamento do IPI (artigo 5º, I, “a”). No entanto, há de se aguardar a decisão do STF para uma solução definitiva no julgamento da matéria com repercussão geral.

[1] Nos termos do artigo 155, §2º, I, o ICMS “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.”

[2] Essa comprovação pode ser efetuada por medidor da energia consumida na atividade industrial, por laudo técnico ou por outro meio idôneo instituído por cada Estado ou Distrito Federal.

FONTE: Revista Consultor Jurídico – Por Deonísio Koch

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