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A COMPRA ALAVANCADA E O PROPÓSITO NEGOCIAL

23 de abril de 2021

É importante que as autoridades fiscais passem a analisar racionalmente, livres do puro viés arrecadatório, as operações fiscalizadas.

Um problema causador de muita insegurança jurídica ao mercado de M&A (fusões e aquisições) – ao menos nas últimas duas décadas – diz respeito ao aproveitamento fiscal (amortização no IRPJ e na CSLL) do ágio pago pelo investidor em aquisição de participação societária, direito este que é possibilitado pela legislação tributária em hipótese de posterior fusão, incorporação ou cisão.

A raiz do problema é a tese do “propósito negocial”, adotada pela Receita Federal e majoritariamente acolhida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), segundo a qual a validade de determinada operação societária vai decorrer de seu propósito. Por tal teoria, se o caminho adotado para efetivação do M&A, e pagamento do ágio, for guiado exclusivamente pelo intuito de elisão fiscal, a operação seria ilícita e dissimulada, mesmo estando dentro das formas permitidas em lei. Por outro lado, caso a operação tenha um propósito extrafiscal e traga vantagens outras que não se reduzam unicamente à economia tributária, a operação seria válida.

É importante que as autoridades passem a analisar racionalmente as operações, livres do viés arrecadatório.

Dentro das várias situações ligadas a essa problemática, temos aquelas envolvendo a figura da empresa veículo, que é muito utilizada para viabilizar a aquisição da empresa alvo em uma operação de M&A. Na prática, consiste na criação pela investidora de uma holding, interposta para fins de aquisição da participação societária da investida. Passou a ser muito utilizada no fim da década de 1990 (no contexto do Plano Nacional de Desestatização), por empresas estrangeiras que queriam adquirir empresas públicas em condições de equidade para com os players nacionais, com o igual direito ao aproveitamento fiscal do ágio previsto na legislação brasileira.

De lá para cá, tal prática passou a ser adotada não apenas por empresas investidoras estrangeiras, mas também por nacionais, para fins de planejamentos tributários, nos quais, de diversas maneiras, a empresa veículo era instituída pelos “investidores reais”, de forma interposta, para adquirir a empresa alvo, transferindo o ágio que seria aproveitado.

Em geral (ressalvadas as especificidades de cada caso), essa situação é tida como simulação pelas autoridades fiscais, quando não se vislumbra nenhum motivo extrafiscal para utilização da empresa veículo. Isso porque, no sentir dessas entidades, a interposição da holding teria finalidade exclusiva de dissimular, sem substância econômica, o real adquirente, apenas para gerar o ágio aproveitável.

Sem adentrar ao mérito central quanto à [i]legalidade da tese fazendária do propósito negocial, é certo que existem algumas situações específicas em que há, sim, o propósito negocial na utilização da empresa veículo. Uma delas é a situação da operação de compra alavancada (leveraged buyout).

Na compra alavancada a investidora não possui capital próprio necessário (ou não quer comprometê-lo) para adquirir a empresa alvo e, diante disso, cria uma empresa veículo exclusivamente para fins de capitalização mediante empréstimos tomados com terceiros, com a posterior aquisição da investida.

Em tal cenário de aquisição por compra alavancada com capital de terceiros (highly-leveraged transaction), a finalidade da empresa veículo será a atração do capital necessário ao M&A pretendido, de modo a viabilizar o aporte de capital na empresa alvo que, após a incorporação, sucederá a dívida assumida e a quitará com a utilização de sua receita operacional.

Consequentemente, a extinção por incorporação será o gatilho para o aproveitamento tributário do ágio gerado na aquisição.

Além da vantagem tributária do ágio transferido pela empresa veículo, muitas vezes nessas operações de compra alavancada há um benefício estrategicamente financeiro ao investidor, que conseguirá viabilizar o equity, valendo-se de capital de terceiros, sem precisar se descapitalizar. E a utilização da empresa veículo é peça fundamental para isso.

Mesmo diante deste claro propósito estratégico, ainda assim a Receita vem tentando desconsiderar tais operações, taxando-as de dissimuladas, e assim glosando o ágio amortizado, com cobranças de imposto e multa. Felizmente, no âmbito do Carf, acusações fiscais dessa natureza já foram canceladas, validando-se o aproveitamento tributário do ágio decorrente da utilização de empresa veículo em compra alavancada (acórdãos nº 1301-003.469 e nº 1401-003.082).

Neste contexto, é digno de menção o fundamento adotado pelo conselheiro Carlos Augusto Daniel Neto, relator do acórdão nº 1301-003.469, que bem percebeu o propósito negocial na utilização de empresa veículo por um fundo de investimento em participações, para a aquisição da empresa de turismo CVC. Perspicaz foi a análise do mencionado conselheiro: “a estratégia assumida pelo Grupo Carlyle para adquirir o investimento na CVC Brasil demonstra que a dívida assumida era necessária à operação, e apresenta uma coerente racionalidade econômica e financeira, que confere propósito negocial à CBTC [empresa veículo criada], a despeito de sua existência efêmera”.

Portanto, o mero fato de a empresa veículo ter sido utilizada exclusivamente para a aquisição de participação societária (com posterior extinção em incorporação) não lhe retira o propósito negocial. Nesse ponto, importante que as autoridades fiscais passem a analisar racionalmente (livres do puro viés arrecadatório) as operações fiscalizadas, buscando se inteirar das razões financeiras que envolveram o negócio, à exemplo (e belo exemplo) do que fez o Carf no citado caso CVC.

FONTE: Valor Econômico – Por Caio Malpighi

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