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MORATÓRIAS NO CONTEXTO ATUAL

22 de junho de 2020

A relativização generalizada de cumprimento de contratos pode gerar efeitos sistêmicos perversos à economia.

Em 31 de março de 2020, o senador Rodrigo Cunha (PSDB/AL) apresentou ao plenário do Senado Federal o Projeto de Lei 1.200/2020, prevendo a instituição de moratórias setoriais que teriam o objetivo de proteger consumidores afetados economicamente pelos efeitos da pandemia do Coronavírus.

O projeto, arquivado pelo próprio proponente em 17 de abril, procurava regular, durante o período da pandemia, exceções que seriam aplicadas aos contratos de consumo de serviços tidos como essenciais (energia elétrica, água e coleta de esgoto, gás de cozinha encanado, telefonia fixa e móvel e internet), além de outros serviços como seguros, inclusive de saúde e previdenciário, educacionais de qualquer modalidade e contratos bancários, financeiros e de crédito ao consumidor.

A relativização generalizada de cumprimento de contratos pode gerar efeitos sistêmicos perversos à economia.

Ora, não obstante a aparentemente nobre iniciativa de proteger os consumidores que, segundo o projeto arquivado, tiveram sua fonte de renda comprometida em função das medidas de isolamento social, a proliferação de sugestões legislativas desse teor em âmbito federal, estadual e municipal evoca a retomada de mecanismos de dirigismo contratual por parte do Estado brasileiro que podem ter consequências nocivas.

A propósito, recentemente, o próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) alertou para os efeitos negativos sobre o desconto das mensalidades escolares pela Nota Técnica 17/2020/DEE/CADE, que faz referência a outros 22 projetos de lei sendo votados ao redor do país, todos procurando aprovar descontos fixos que deveriam ser aplicados às mensalidades das instituições de ensino.

Esse tipo de “moratória setorial”, como muito bem apelidou o Cade, busca materializar o principio “rebus sic standibus”, segundo o qual o contrato se cumpre tão somente enquanto as coisas permanecerem como eram ao tempo de sua celebração, em oposição ao princípio do “pacta sunt servanda”, que expressa a máxima de que “contratos devem ser cumpridos” – quaisquer que sejam as circunstâncias.

Contudo, esta relativização generalizada de cumprimento de contratos pode gerar efeitos sistêmicos bastante perversos à economia. Afinal, moratórias instituídas sob o formato de iniciativas legislativas nada mais são do que barreiras artificiais criadas para impedir a proliferação do choque para uma parte da cadeia produtiva. E, conforme muito bem citou o Cade, o caso das moratórias de serviços tidos como essenciais pode, em última instância, prejudicar inclusive o próprio consumidor, seja do ponto de vista da solvência dos prestadores de serviço (quando os descontos são altos demais), seja porque negociações individuais poderiam gerar melhores resultados.

As moratórias setoriais, portanto, obrigam o setor privado a suportar um ônus mal dimensionado, que não é visível à primeira vista – o que é um tipo de intervenção no setor econômico bastante indesejável.

Esse tipo de iniciativa mostra-se impugnável perante o atual marco legal brasileiro responsável por regular os parâmetros para a livre iniciativa, qual seja, a Lei 13.874/19, fruto da conversão em lei da chamada “MP da Liberdade Econômica”. A acomodação dos interesses, no âmbito das relações privadas, exigirá, sem dúvida, grande esforço.

Quando se importa esta discussão para o universo empresarial mais amplo, que abrange contratos mercantis e títulos de dívida privados emitidos no período pré-pandêmico, constata-se que já vêm sendo objeto de debate, mundo afora e também no Brasil, mecanismos que possam diminuir os efeitos das inadimplências, cujas repercussões poderão ser perversas para a economia. Além de sufocar o Judiciário com inúmeras disputas contratuais e até mesmo recuperações judiciais.

Contratos mercantis, por essência, são pautados no princípio do pacta sunt servanda, sendo a segurança jurídica um elemento imprescindível à estruturação dos mercados e à preservação da confiança nas relações entre agentes econômicos, consumidores e o Estado, quando presente.

Como os mercados são sistemas interconectados, está no radar de todos o desejo de inibir o efeito sistêmico, dominó – como fazer isso com o menor grau de interferência estatal é o atual desafio.

Não se pode negar que quando a situação de calamidade se impõe, é inegável a necessidade de socorro à economia. Afinal, na medida em que a crise perdura, a situação das empresas tende a se agravar, podendo ocorrer, inclusive, vencimento antecipado de dívidas sujeitas a estipulações acessórias que, nas atuais circunstâncias, se mostrem inexequíveis. Não existe, contudo, medida simples e mágica que tenha o condão de resolver este imbróglio.

Uma intervenção equilibrada e de espectro mais amplo, que possa minorar as rupturas sistêmicas na atividade empresarial sem suscitar discussões constitucionais, embora desejável, parece distante diante do tumultuado processo político que, lamentavelmente, o país vivencia.

É premente, portanto, que se recorra à desafiadora negociação, contrato a contrato,

em busca de uma composição, seja no seio de assembleias digitais, seja pela mediação, mecanismos que podem facilitar a aproximação entre devedores e credores. Uma solução negociada pelas partes é melhor que infindáveis litígios judiciais, hipótese que as leis de caráter emergencial e temporário nem sempre afastam.

Decerto, diante da complexidade dos problemas trazidos pela pandemia, a combinação de mecanismos bem dosados exige um debate equilibrado, conduzido tanto no seio da sociedade civil quanto na esfera pública, por meio dos canais institucionais.

FONTE: Valor Econômico – Por Ana Sofia C. Monteiro e Maria Isabel Bocater

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