Identificação da natureza jurídica da figura da perda de uma chance: trata-se de dano patrimonial ou extrapatrimonial?
A figura da perda de uma chance diz respeito à lesão, mediante conduta do agressor que interfere no curso normal dos acontecimentos, a uma expectativa fundada1 (não apenas plausível, mas razoavelmente esperada de concretização) de obtenção de uma posição jurídica mais favorável pela vítima.
O instituto visa à “responsabilização do agente causador não de um dano emergente, tampouco de lucros cessantes, mas de algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se buscar posição mais vantajosa que muito provavelmente se alcançaria, não fosse o ato ilícito praticado”. Precisamente por isso, a chance deverá ser “razoável, séria e real, e não somente fluida ou hipotética”2.
Questão das mais interessantes diz respeito à identificação da natureza jurídica da figura da perda de uma chance: trata-se de dano patrimonial ou extrapatrimonial?
Dada a complexidade dessa espécie de dano, a resposta à indagação poderá inclinar-se em ambos os sentidos. A definição de sua natureza dependerá dos contornos fáticos do caso.
Nesse sentido é o entendimento doutrinário veiculado no Enunciado n.º 4443 das Jornadas de Direito Civil, posição também perfilhada pelo Superior Tribunal de Justiça4.
Precisamente por isso, a caraterização do instituto como modalidade autônoma de dano é questionável. Como apontado por Flávio Tartuce, “muitas situações descritas pelos adeptos da teoria podem ser resolvidas em sede de danos morais ou danos materiais, sem que a vítima tenha necessidade de provar que a chance é séria e real“5.
No Direito do Trabalho, é plenamente possível a aplicação da teoria da perda de uma chance, seja nas fases pré e pós-contratual, seja durante a execução do contrato, o que vem sendo reconhecido pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.
De início, é relevante destacar a admissão, na atualidade, sem maiores dificuldades, de hipóteses ensejadoras de responsabilidade civil mesmo na fase pré-contratual. Naturalmente, meras tratativas genéricas, superficiais, dificilmente envolverão circunstâncias nas quais seja possível visualizar a incidência do dever de indenizar, sendo necessária, em regra, a reunião de determinados pressupostos, consoante leciona Judith Martins-Costa: “A existência de negociações, qualquer que seja a sua forma, antecedentes a um contrato; a prática de atos tendentes a despertar, na contraparte, a confiança legítima de que o contrato seria concluído; a efetiva confiança, da contraparte; a existência de dano decorrente da quebra desta confiança, por terem sido infringidos deveres jurídicos que a tutelam; e, no caso da ruptura das negociações, que esta tenha sido injusta, ou injustificada — aí estão, sinteticamente postas, as condições da responsabilidade pré-negocial”6.
Na seara trabalhista, na fase pré-contratual, o Tribunal Superior do Trabalho já reconheceu a existência de perda de uma chance no caso de frustração de expectativa legítima e séria de admissão, após aprovação em processo seletivo da empresa e entrega dos documentos por ela solicitados, inclusive CTPS, mantida em sua posse durante meses, inviabilizando a possibilidade de contratação regular por outro empregador7.
No curso do contrato, a Alta Corte Trabalhista já decidiu configurar a perda de uma chance a ocorrência de acidente de trabalho que, em razão do tempo de afastamento e das sequelas provocadas, impeça o empregado de obter promoções galgadas por todos os colegas com idêntica qualificação e condição funcional8. No âmbito da relação de trabalho portuário avulso, o TST já reconheceu, em diversas ocasiões, consistir em perda de uma chance a exclusão de trabalhadores da escala para fainas com melhores remunerações, bem como o não oferecimento, a determinado obreiro, de curso para habilitação para tais atividades9, raciocínio que pode ser transportado, mutatis mutandis, para o contexto do contrato de emprego, relativamente, por exemplo, a questões envolvendo a obtenção de promoções.
Na fase pós-contratual, é possível exemplificar como hipótese de ocorrência de perda de uma chance, à luz da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, a elaboração de lista discriminatória, com informação a respeito da propositura de relação trabalhista por alguns obreiros, divulgada entre as empresas do setor ao qual corresponda a sua qualificação profissional e decisiva para a definição da contratação10.
É fundamental perceber que a identificação da fase contratual será decisiva para a definição do prazo prescricional.
Em relação à lesão pré-contratual, o prazo prescricional será quinquenal. Não se pode olvidar que, em conformidade com o art. 7º, XXIX, da Constituição Federal de 1988, o prazo bienal é excepcional, incidindo apenas após a extinção do contrato, pressuposto que, obviamente, não se faz presente nas hipóteses de lesões pré-contratuais. Nessa linha de intelecção, a SDI-I do TST, por ocasião do julgamento do E-ED-RR 173400-24.2008.5.02.0445, sob a relatoria do Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, já assentou que a “ação quanto a créditos resultantes das relações de trabalho tem o prazo prescricional de cinco anos, sendo este prazo aplicável às relações pré-contratuais”11.
No tocante à lesão contratual, o prazo prescricional será quinquenal, devendo-se observar, entretanto, o biênio posterior a eventual extinção superveniente do vínculo empregatício.
Por sua vez, tratando-se de lesão pós-contratual, o prazo de prescrição será bienal, em razão da aplicação da parte final do inciso XXIX do art. 7º da CF/88. Também é esse o entendimento perfilhado pela SDI-I da mais elevada Corte Trabalhista, consoante se depreende do exame da decisão proferida no E-RR 692.31.2010.5.04.035112, sendo Relator o Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro.
Em qualquer dos casos, o termo inicial do prazo prescricional é identificado no momento em que se torna exigível a reparação, com a ciência do dano.
1 “(…) não se deve olhar para a chance como perda de um resultado certo porque não se terá a certeza de que o evento se realizará. Deve-se olhar a chance como a perda da possibilidade de conseguir um resultado ou de se evitar um dano; devem-se valorar as possibilidades que o sujeito tinha de conseguir o resultado para ver se são ou não relevantes para o ordenamento. Essa tarefa é do juiz, que será obrigado a fazer, em cada caso, um prognóstico sobre as concretas possibilidades que o sujeito tinha de conseguir o resultado favorável” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11 ed., rev. e amp. São Paulo: Atlas, 2014, p. 154).
2 REsp 1190180/RS, Relator Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/11/2010, DJe 22/11/2010.
3 444. A responsabilidade civil pela perda de chance não se limita à categoria de danos extrapatrimoniais, pois, conforme as circunstâncias do caso concreto, a chance perdida pode apresentar também a natureza jurídica de dano patrimonial. A chance deve ser séria e real, não ficando adstrita a percentuais apriorísticos.
4“A perda da chance se aplica tanto aos danos materiais quanto aos danos morais” (REsp 1079185/MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/11/2008, DJe 04/08/2009).
5 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. vol. único. 5 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 512.
6MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 485.
7 “FASE PRÉ-CONTRATUAL. INDENIZAÇÃO PELA PERDA DE UMA CHANCE. DANOS MATERIAIS. CARACTERIZAÇÃO. Desde as negociações preliminares que antecedem a celebração do contrato vigora o princípio da boa-fé no dever de conduta dos sujeitos, conforme dispõe o artigo 422 do Código Civil. O empregador tem o dever de agir com lealdade, lisura, respeito e consideração com o empregado, sobretudo ante o seu estado de necessidade econômica e a sua condição de hipossuficiente, de modo que o fomento à expectativa de direito ao contrato de trabalho pode causar prejuízos de natureza moral e material, o que, por consequência, faz emergir o dever de reparação baseado na perda de uma chance. A inobservância dos referidos deveres pelo contratante viola a cláusula geral de boa-fé objetiva, adotada no Código Civil (art. 113), que estabelece o dever geral imposto a todos de se comportarem segundo padrões de probidade e de lealdade. Logo, ainda na fase pré-contratual, deverão as partes proceder com zelo e cautela, a fim de impedir o surgimento de condutas que criem, a um dos contratantes, expectativas reais e consistentes em relação a determinada situação, que no futuro poderá não ocorrer. É justamente nesse ambiente de frustração que poderá nascer a obrigação de reparação, caso seja demonstrado que o nível de expectativa gerado ultrapassou aquele considerado como normal e usualmente verificado na formulação do negócio jurídico. Não se trata de reparação pelo que efetivamente perdeu, mas na perda da oportunidade de ganho. No caso em apreço, verifica-se que o reclamante concorreu à vaga de “supervisor de setor de carga” pela empresa ré, para a qual foi aprovado, tendo, inclusive, entregue a CTPS e os demais documentos necessários para finalização da contratação na função almejada, a qual, posteriormente, foi frustrada. Outrossim, o quadro fático delineado no acórdão recorrido revela a conduta negligente da reclamada, pois houve a solicitação dos documentos do reclamante, dentre eles a CTPS, que ficou em poder da ré por mais de sete meses, impossibilitando-o de conseguir emprego em outra empresa. Configurado o dano decorrente da conduta do empregador, deve ser mantido o acórdão regional que o condenou a indenizá-lo. Recurso de revista de que não se conhece. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Ressalvado meu posicionamento pessoal, verifico que, ao condenar a ré ao pagamento de honorários de advogado, apesar de reconhecer que o autor não está assistido pelo sindicato, a Corte Regional contrariou a Súmula nº 219 do TST. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento” (RR 212-59.2010.5.04.0252, Relator Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, Data de Julgamento: 03/05/2017, 7ª Turma, Data de Publicação: DEJT 12/05/2017).
8“INDENIZAÇÃO POR PERDA DE UMA CHANCE. A teoria da perda da chance consiste na responsabilidade do autor do dano quando obsta outra pessoa de auferir vantagem ou simplesmente a impede de evitar prejuízos, revelando-se, assim, a superveniência de chance séria e real. No presente caso, ficou demonstrado que o reclamante perdeu a chance de obter a promoção que todos os seus colegas tiveram, frustrando-se essa progressão funcional em razão do acidente de trabalho” (RR 54800-02.2009.5.15.0072, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 30/04/2014, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 09/05/2014).
9“Quanto às fainas de células em alturas, uma vez demonstrado que havia privilégio em relação a poucos trabalhadores avulsos, concluiu a Corte de origem que o reclamante foi indevidamente obstado, cabendo-lhe indenização pela perda de uma chance, consistente na perda da possibilidade de obter melhor remuneração. Considerando-se que cabe ao réu a organização das escalas e o treinamento dos trabalhadores, ficou configurado o ato ilegal do OGMO em não distribuir de forma isonômica a escalação dos empregados para as fainas em questão, bem como oferecer curso de especialização para que o reclamante pudesse concorrer às respectivas escalas” (Ag-RR 1627-86.2011.5.09.0322, Relatora Ministra Delaíde Miranda Arantes, 2ª Turma, Data de Julgamento: 21/08/2018, Data de Publicação: DEJT 24/08/2018)
10 “RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. EXISTÊNCIA DE “LISTA DISCRIMINATÓRIA”. MARCO INICIAL. CIÊNCIA DO FATO LESIVO. Incontroversa a aplicação da prescrição trabalhista. A discussão dos autos diz respeito à data de início para contagem da prescrição no caso de existência de “lista discriminatória”. Ficou consignado no acórdão regional que o autor tomou conhecimento da existência da lista em setembro de 2009, por comentários de terceiros. O prazo prescricional tem início a partir da ciência pelo empregado de que seu nome está relacionado nessa lista. Isto porque o empregado pode até ter conhecimento da existência de tal lista, mas não imagina que seu nome esteja nela relacionado. Precedentes. O recurso encontra óbice na Súmula 333 do TST. Recurso de revista não conhecido. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INCLUSÃO DO NOME DE EMPREGADOS EM “LISTA DISCRIMINATÓRIA” DE PESSOAS COM RECLAMAÇÕES TRABALHISTAS. O TRT da 9ª Região asseverou ser incontroversa a existência de uma lista, denominada PIS-MEL, emitida pela Employer Organização de Recursos Humanos Ltda., com a inserção de nomes de ex-empregados e respectivas empresas onde laboraram e que nesta lista consta o nome do autor, como empregado da Coamo Agroindustrial Cooperativa. Ficou ainda registrado no acórdão regional que a Employer observava se os candidatos já haviam trabalhado para a empresa, qual o seu comportamento e se tinham dado algum problema ou ajuizado ação trabalhista e que a lista PIS-MEL tinha uma grande importância dentro do processo de escolha do trabalhador. Por fim, o Tribunal a quo verificou que havia uma rede de informações entre a Employer Organização de Recursos Humanos Ltda. e seus clientes tomadores de serviço, especificamente a Coamo, com o intuito de apontar trabalhadores considerados ‘indesejáveis’ e que a lista PIS-MEL tinha como razão de sua existência relatar aqueles ex-empregados que, porventura, ajuizaram ação trabalhista, ou apresentaram-se como testemunha. Com efeito, a inclusão de nomes em “listas” criadas para fins de consulta pré-contratual, com informações acerca de o empregado ter reclamações trabalhistas ou prestar depoimentos como testemunha contra ex-empregadores ou o simples fato de não ser da simpatia (desafeto) de encarregados evidencia o caráter discriminatório e impeditivo ao reemprego, sendo desnecessária a comprovação do prejuízo para o direito à indenização por danos morais. Assim, a r. decisão do Tribunal Regional é insuscetível de ser reexaminada, pois para se concluir de forma distinta seria imprescindível o reexame do quadro fático-probatório dos autos, procedimento vedado em recurso de revista, consoante Súmula 126 do TST. Recurso de revista não conhecido” (RR 585-50.2010.5.09.0091, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 14/12/2016, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 19/12/2016). Esclarecemos que, no acórdão, não há a informação de haver sido postulada indenização pela perda de uma chance no caso concreto. No entanto, dado o delineamento fático, seria absolutamente justificável a postulação.
11E-ED-RR 173400-24.2008.5.02.0445, Relator Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 30/03/2017, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 11/04/2017.
12 “Daí partindo, o Colegiado Turmário concluiu que as pretensões da Reclamante já estão prescritas, pois a actio nata remonta a 31/01/2008 – data da ciência inequívoca da lesão -, ao passo que a presente ação apenas foi ajuizada em 25/10/2010, quando já escoado o prazo bienal. De fato, tal exegese deve prevalecer, pois a literalidade da norma não comporta a ilação pretendida pela Reclamante, visto claramente reservar à fase pós-contratual o prazo prescricional bienal. Também a interpretação teleológica vem respaldar a tese decisória, pois, uma vez extinto o contrato de trabalho, não subsistem o temor reverencial e o fundado receio de perda do emprego, não se justificando, assim, a aplicabilidade de prazo prescricional mais elastecido” (E-RR 692.31.2010.5.04.0351, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, Data de Julgamento: 05/06/2014, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 13/06/2014.).
FONTE: Jota – Por Leandro Fernandez