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RECUPERAÇÃO JUDICIAL DEVE DAR SEGURANÇA JURÍDICA AO AGRONEGÓCIO

29 de março de 2019

Muito embora a Lei 11.101/05 apresente disposições claras e expressas acerca das regras que norteiam os procedimentos da recuperação judicial, o que se observa nos mais de 13 anos desde sua entrada em vigor é que muitas flexibilizações vêm sendo permitidas, ainda que contrárias ao texto expresso da lei, para que se viabilize a superação da crise econômica do devedor.

Nesse cenário, mais uma nova tentativa de se contornar disposição absolutamente clara tem começado a surgir com maior frequência no cenário das recuperações judiciais, qual seja, a busca do produtor rural pelo beneplácito legal sem o preenchimento dos requisitos do artigo 1º e do “caput” do artigo 48 da Lei, os quais limitam a aplicação do diploma recuperacional ao empresário ou sociedade empresária que exerça suas atividades de forma regular há mais de dois anos antes do pedido.

Para fins de contextualização, rememora-se apenas que muitos produtores rurais buscam se valer da recuperação judicial sem, no entanto, ostentarem posição equiparada a de empresário exigida pela Lei 11.101/05 ou, ao menos, sem a ostentarem pelo período legal de mais de dois anos.

Lembre-se que tal equiparação não se origina do mero exercício da atividade rural de forma organizada para a produção ou a circulação de bens, mas da inscrição dos produtores no Registro Público de Empresas Mercantis (registro na Junta Comercial), conforme disposição expressa do artigo 971 do Código Civil.

Não se pretende neste artigo aprofundar os fundamentos e teses em que se acredita estar calcada a necessidade da imposição de freios à aceitação de uma flexibilização ou de contornos a tais dispositivos, o que já foi feito em inúmeros e recentes estudos sobre o tema – mas sim demonstrar como vem reagindo a jurisprudência pátria acerca do tema, assim como quais os desdobramentos que estão ocorrendo para os produtores rurais que sempre atuaram como pessoas físicas e, agora, começam a adotar as formalidades exigidas com o escopo exclusivo de requerer recuperação judicial.

Em que pese as escassas vozes dissonantes e alguns julgados isolados, já se verifica que a maior parte dos tribunais do país tem colocado freios a flexibilizações e fixado dois pilares básicos sobre o tema do produtor rural, para a aplicação e intepretação dos requisitos estabelecidos pela Lei 11.101/05, quais sejam: i) o produtor rural tem a faculdade de exercer suas atividades sem a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, mas se assim o fizer fica enquadrado no conceito de empresário irregular na acepção do conceito do “caput”, do art. 48, da Lei 11.101/05 e ii) a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis tem caráter constitutivo, iniciando-se do referido ato a contagem do prazo de 2 (dois) anos previsto no citado art. 48.[1]

Com efeito, o Tribunal de Justiça de São Paulo analisa a matéria desde 2009 sempre com rédeas curtas e obstando recuperações judiciais que não observem os referidos pilares, a exemplo dos precedentes nos recursos: (i) Agravo de Instrumento 0343412-93.2009.8.26.0000; (ii) Apelação 9084484-77.2009.8.26.0000 e; (iii) Agravo de Instrumento 9031524-47.2009.8.26.0000. Alguns acórdãos são encontrados no sentido oposto, mas com ostensiva ressalva e citação à corrente majoritária que observa os princípios supracitados.

Importante destacar, ainda, as decisões do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Estado predominantemente rural, que são categóricas ao exigir do produtor rural que preencha o requisito do registro prévio de dois anos como condição para o pedido de recuperação judicial, citando-se a título de exemplo os julgados nos agravos de instrumento: (i) 0077439-95.2009.8.11.0000 – 77439/2009; (ii) 0097224-67.2014.8.11.0000 – 97224/2014; (iii) 0137388-40.2015.8.11.0000 – 137388/2015 e; (iv) 1001742-07.2016.8.11.0000.

No mesmo sentido, encontra-se precedentes também nos Estados da Bahia (a exemplo do agravo de instrumento 0014103-07.2017.8.05.0000) e Rio Grande do Sul (a exemplo da Apelação Cível 70071667604).

O Tribunal de Justiça de Goiás, outro estado em que a atividade rural é pujante, passou a intensificar, em meados de 2018, essa corrente majoritária, a exemplo dos julgados nos Agravos de Instrumentos 5094889.05.2018.8.09.0000, 5084821.93.2018.8.09.0000 e 5100130.57.2018.8.09.0000 – marcando seu posicionamento quanto à exigência do registro prévio de 2 (dois) anos para a possibilidade do produtor rural se valer da recuperação judicial.

A matéria chegou também ao Superior Tribunal de Justiça. Em 2013, a Corte Superior apreciou o REsp 1.193.115-MT e, em que pese a divergência inicialmente instaurada entre os Ministros, o posicionamento vencedor, por 4 votos a 1, foi no sentido de exigir a comprovação do registro na Junta Comercial, não bastando a invocação do exercício, meramente de fato, da atividade rural.

Em abril de 2016, o STJ adotou o mesmo posicionamento na Tutela Provisória de 11.376. E também no julgamento do REsp 1.578.579/MT, em novembro de 2017.

Como consequência dos referidos julgados, alguns produtores rurais começam a se ater à orientação dos tribunais, efetivamente ajuizando processos de recuperação judicial após o registro na Junta Comercial competente e depois de transcorrido o biênio legal.

Por outro lado, sem a mesma coerência, pleiteiam a inclusão, no processo recuperatório, de dívidas que contraíram na qualidade de pessoas físicas, anteriormente à constituição de personalidade dentro do regime equiparado ao empresário, originado, como visto, da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis (artigo 971 do Código Civil).

Assim, com base nos mesmos fundamentos e princípios dos julgados acima abordados, começam a ganhar corpo os precedentes estabelecendo que o produtor rural que atuava na informalidade sem o registro na Junta Comercial, mas que assim o fez, posteriormente, e aguardou o transcurso do prazo de 2 anos, poderá requerer a recuperação judicial. Porém, não poderá sujeitar a esse processo os créditos que contraiu na época em que contratava como pessoa física/natural, sem o registro empresarial (não equiparado a empresário) – a exemplo dos acórdãos do final do ano de 2018, provenientes dos agravos de instrumento 1012593-71.2017.8.11.0000 e 1012691-56.2017.8.11.0000 do Tribunal de Justiça do Mato Grosso.

Essa posição, além de lógica, mais uma vez se baseia no caráter constitutivo da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis. Isto é, a personalidade do produtor rural equiparado a empresário somente nasce quando do implemento de tal inscrição, sendo evidente que os atos (contratos) praticados enquanto pessoa física (um não empresário, que não pode se submeter a uma recuperação judicial) não podem ficar sujeitos ao processo de recuperatório.

É certo que o produtor rural sem registro aufere diversos benefícios por tal situação, como melhores condições fiscais[2], previdenciárias[3] e formais (sequer leva a público balanços e toda a documentação que deve se tornar disponível com o registro em Junta comercial).

Ademais, o produtor rural que atua como pessoa física, transmite aos seus contratantes a certeza de que as suas relações jurídicas são reguladas pelo direito civil ordinário e não pela legislação empresarial específica, como é o caso da Lei 11.101/05 aplicável ao empresário e sociedades empresárias.

Com efeito, não poderia o produtor rural obter da justiça a chancela do melhor dos mundos nos dois regimes, isto é, auferir todos os benefícios da informalidade do produtor rural atuante como pessoa física e depois, com a constituição de pessoa jurídica empresária, sujeitar terceiros com quem contratou em seu regime anterior a um processo típico empresarial, que é o da recuperação judicial.

Não é lógico e razoável que os contratantes, notadamente aqueles que se tornaram credores de uma pessoa física, repentinamente tenham seus créditos incluídos em processo recuperacional, de pessoa jurídica empresária constituída a posteriori.

Os acórdãos dos recursos mencionados acima do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, apresentam importante excerto a esse respeito, verbis:

“Sopesadas as circunstâncias, não se afigura razoável que um crédito analisado e concedido à produtor rural (não empresário) possa se sujeitar aos efeitos da recuperação judicial somente porque se registrou para ser equiparado a empresário em momento posterior.

O que não se mostra razoável, portanto, é que o devedor possa se valer, cumulativamente e no mesmo período, do que há de conveniente no regime pretérito (vantagens do regime não empresarial) e atual (recuperação judicial, exclusiva do regime jurídico empresarial art. 1º da Lei nº 11.101/05, ainda que por equiparação), porquanto acaba por criar um terceiro regime não previsto em lei e fora do espectro de avaliação pelos credores, que sequer cogitavam, na ocasião, da possibilidade de ter seu crédito sujeito a relevantes alterações.”

E esse já havia sido o posicionamento exarado em recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, por unanimidade dos votos exarados pelos Des. Carlos Dias Motta, Cesar Ciampolini e Alexandre Lazzarini – AI 2028287-46.2017.8.26.0000, bem como pela originária Câmara Especial de Falências e Recuperações do mesmo Tribunal no AI 9031524-47.2009.8.26.0000 (retro citado). E da mesma forma, já se manifestou o Tribunal de Justiça da Bahia, em agosto de 2018, podendo ser extraídas as seguintes e categóricas lições ao longo do acórdão do AI 8003980-71.2018.8.05.0000:

“(…) É fácil concluir, portanto, que o produtor rural não pode se beneficiar de dois regimes jurídicos, isto é, exercer as suas atividades como pessoa natural, só o regime jurídico de direito civil (sem inscrição na Junta Comercial), e, posteriormente, inscrever-se na Junta Comercial, para iniciar processo de recuperação, instituto típico do regime jurídico de direito das empresas.

(…)

Durante todo esse período, portanto, usufruíram do tratamento fiscal mais benéfico outorgado pela legislação ao produtor rural pessoa física, destacando-se a apuração diferenciada do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, conforme a Seção VII do Decreto nº. 3000/99. Outrossim, por mais de uma década, estiveram livres das obrigações impostas pela legislação aos empresários.

Na realidade, os agravados só optaram pela inscrição na JUCEB em 14/12/2015, após serem cobrados judicialmente por dívidas milionárias contraídas junto a fornecedores e instituições financeira, sendo imperioso destacar que, poucos meses depois, mais precisamente em 01/03/2016, ajuizaram a primeira ação de recuperação judicial, na Comarca de Brasília/DF (processo nº. 2016.01.1016510-7).

(…)

E de outra forma não poderia ser, afinal, haveria clara violação ao princípio da segurança jurídica se o produtor rural pudesse celebrar contratos e contrair dívidas como pessoa física, para, no dia seguinte, tornar-se empresário individual e buscar a aplicação dos benefícios previstos na Lei de Falência, obstando, assim, as ações individuais de execução ajuizadas pelos seus credores.

(…)

Aliás, isso nem seria juridicamente possível, pois, diante da natureza constitutiva do ato de inscrição da Junta Comercial, a mudança para o regime jurídico de direito empresarial opera efeitos ex nunc, isto é, prospectivos, pelo que não pode retroagir para afetar situações pretéritas, constituídas sob regime jurídico diverso, de direito civil.”

Como se vê, os julgadores tiveram a sensibilidade de interpretar a legislação vigente e também buscar coibir as atitudes oportunistas que, ao longo do acórdão, são classificadas ainda como violadoras do princípio da boa-fé e caracterizadoras do abuso de direito, “por desvio de finalidade do instituto da recuperação judicial”, com fundamento nos artigos 187 e 422, do Código Civil.

A questão acaba de chegar ao STJ, tendo como origem a citada recuperação judicial do Mato Grosso, de onde se extraiu o excerto acima transcrito, por meio de Tutelas Provisórias requeridas pelos produtores rurais – visando obter efeito suspensivo aos Recursos Especiais que interpuseram na origem.

Nessas Tutelas Provisórias, foi requerida a suspensão de atos executórios de dívidas excluídas da recuperação judicial – em razão de terem sido contraídas junto aos credores pelas pessoas físicas dos produtores rurais, antes do registro na Junta Comercial.

Após um embate preliminar sobre competência, restou reconhecida a prevenção do caso ao ministro Marco Buzzi.

Assim, na Tutela Provisória 1937/MT, em 27 de fevereiro, o ministro Marco Buzzi rejeitou o pedido de efeito suspensivo dos requerentes, reforçando os pilares de sustentação da jurisprudência atual, para destacar seu entendimento de que há situação irregular das atividades do produtor rural que não se registra na Junta Comercial, bem como para ressaltar a natureza constitutiva (não meramente declaratória) que tal medida proporciona.

Portanto, o que se extrai acerca da discussão em torno desta matéria é que, além da jurisprudência majoritária preocupar-se com a correta aplicação do texto legal, a fim de conferir segurança a todos os envolvidos, visa também desestimular condutas oportunistas – daqueles produtores rurais que, por longos anos atuaram informalmente e contrataram como pessoas naturais por opção, súbita e claramente formalizam seu registro com o exclusivo escopo de obter as benesses de uma recuperação judicial.

Considerando a relevância da atividade agrária no Brasil, espera-se que se consolide o majoritário entendimento da jurisprudência ora abordada, em nome de um bem muito maior do que uma ou outra recuperação judicial pontual, isto é, em prol do estímulo ao registro e à regularização dos produtores rurais de nosso país, visando a profissionalização de nicho tão expressivo da economia e a segurança jurídica das relações contratuais que desse cenário emanam – como exemplarmente ressaltado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em seu voto no julgamento do REsp 1.193.115 – MT[4].

[1] O Caráter constitutivo do registro já é algo consolidado desde a III Jornada de Direito Civil – Enunciado nº 202.

[2] Decretos 3.000/99 e 9.580/18

[3] REsp 1503711/RS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 24/03/2015.

[4] “(…) A minha preocupação é com a formação de um precedente acerca dessa matéria, que inovaria substancialmente em relação ao quadro atual do Direito Brasileiro. O STJ tem como característica ser um “tribunal de precedentes”. (…) Deve-se estimular o registro e a regularização das empresas agrárias pelos agricultores brasileiros, como, aliás, é permitido no Código Civil de 2002, de modo, inclusive, a tornar mais profissional essa atividade fundamental para a economia brasileira (…)”

FONTE: Conjur – Por Felipe de Moraes da Costa, Milena Grossi dos Santos Meyknecht e Bruno Chiaradia

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