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REGIME MISTO DE PIS/COFINS E TRIBUTAÇÃO DE RECEITAS FINANCEIRAS

21 de março de 2019

A artimanha exegética do Fisco.

O Decreto nº 8.426/15, como se sabe, restabeleceu a incidência de Pis e Cofins, à alíquota total de 4,65%, sobre receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime não-cumulativo de apuração dessas contribuições. O STJ, inclusive, recentemente chancelou essa cobrança, mesmo reinstituída via decreto executivo (REsp nº 1.586.950), e o STF já reconheceu repercussão geral à matéria (RExt nº 986.296).

No atual estado da arte, portanto, a tributação das receitas financeiras condiciona-se ao regime de apuração de Pis/Cofins a que estiver submetida a pessoa jurídica.

Se o regime for o cumulativo, as receitas financeiras seguem desoneradas porque não decorrem do desempenho do objeto social da pessoa jurídica – a menos, é claro, que se trate de instituição financeira –, e, assim, não integram a base de cálculo definida pelo art. 3º da Lei nº 9.718/981.

Se o regime for o não-cumulativo, as receitas financeiras acomodam-se, sim, na mais larga base de cálculo prevista no art. 1º das Leis nºs 10.637/02 e 10.833/032; e, suprimida a previsão legal de alíquota zero, sujeitam-se então à tributação sob a alíquota total de 4,65%.

Sabe-se, porém, que uma pessoa jurídica pode sujeitar-se a um regime “misto”, sob o qual apura as contribuições parte pelo regime cumulativo, parte pelo não-cumulativo. Atento, o Decreto nº 8.426/15 cuidou de afastar eventual hesitação quanto à disciplina aplicável nessa hipótese, prevendo a tributação das receitas financeiras mesmo para as pessoas jurídicas que tenham apenas parte de suas receitas sujeitas ao regime não cumulativo (art. 1º, §1º). É dizer, na hipótese de regime misto, vale a regra aplicável ao regime não-cumulativo.

Essa opção legislativa tem, a nosso ver, um fundamento bastante razoável. Como o dinheiro é um bem fungível por excelência, não será nunca possível saber qual receita operacional – a cumulativa ou a não-cumulativa – gerou a receita financeira da empresa. Daí justificar-se a incidência das contribuições sobre as receitas financeiras do contribuinte que aufere receitas operacionais sujeitas a ambos os regimes.

Na Solução de Consulta nº 387/17, porém, a RFB manifestou o inventivo entendimento de que as receitas financeiras podem ser tributadas mesmo por quem se sujeite unicamente ao regime cumulativo das contribuições.

O regime não-cumulativo, como sabemos, é a regra geral na apuração de Pis e Cofins. O artigo 10 da Lei nº 10.833/03 lista, então, as exceções, isto é, as hipóteses de aplicação do regime cumulativo.

Na referida solução de consulta, a RFB dividiu essas exceções em dois grupos: o grupo das exceções subjetivas e o grupos das exceções objetivas. As exceções subjetivas alcançariam a pessoa jurídica “por inteiro”, em razão de alguma característica ou atribuição sua, e seriam identificáveis mediante referência do artigo 10 à “pessoa jurídica”. Seriam exceções subjetivas, portanto, as “pessoas jurídicas tributadas pelo imposto de renda com base no lucro presumido” (inciso II), as “pessoas jurídicas optantes pelo Simples” (inciso III), as “pessoas jurídicas imunes” (inciso IV) etc.

Já as exceções objetivas alcançariam apenas determinadas receitas da pessoa jurídica, e a senha para identificá-las seria justamente a referência, no texto legal, a espécies de receitas: “receitas decorrentes da venda de jornais” (inciso IX), “receitas decorrentes de serviço prestado por hospital” (inciso XIII) etc.

Pois bem. A consulente era uma empresa dedicada à construção civil, segmento econômico sujeito ao regime cumulativo (inciso XX); na taxionomia hermenêutica da RFB, tratava-se de uma hipótese de exceção objetiva (“receita decorrente de obras de construção civil”). Nenhuma das ditas exceções subjetivas aplicava-se à consulente: não era imune a impostos, não era optante do Simples e, acima de tudo, não era optante do regime do lucro presumido.

Eis, então, a artimanha exegética do Fisco: para todos os fins, a consulente seria uma pessoa jurídica sujeita ao regime não-cumulativo, embora suas receitas – circunstancialmente, todas as suas receitas – fossem sujeitas ao regime cumulativo. E, sujeitando-se ao regime não-cumulativo, suas receitas financeiras seriam normalmente tributadas por Pis e Cofins.

A solução de consulta não fica a salvo de críticas. Em primeiro lugar, soa-nos impróprio catalogar no regime não-cumulativo uma pessoa jurídica que não submete nenhuma de suas receitas a tal regime. O artificialismo dessa construção teórica vem, aliás, confessado no texto da solução de consulta, quando exemplifica o ponto mediante referência a uma pessoa jurídica optante do lucro real dedicada à prestação de serviços de educação infantil (inciso XIV do artigo 10): “tudo ocorre como se ela fosse uma pessoa jurídica cumulativa”.

Em segundo lugar, a solução suprime a ratio do §1º do art. 1º do Decreto nº 8.426/15, que previu a incidência das contribuições na hipótese de regime misto. Afinal, se o contribuinte aufere somente receitas operacionais cumulativas, o numerário aplicado, gerador de receita financeira, presumivelmente terá origem em uma receita cumulativa, e nesse caso não se justificaria a incidência das contribuições.

Finalmente, há razões para crer que a contraposição de exceções subjetivas e objetivas não é assim tão exata, ou, ao menos, não segue rigorosamente o paralelismo entre pessoa jurídicas e receitas, como enxerga a autoridade fiscal. Vários dos incisos do art. 10 da Lei nº 10.833/03 referem-se a receitas próprias de determinadas atividades, quando não de certas pessoas jurídicas, de maneira que a fronteira entre os critérios subjetivo e objetivo é bastante nebulosa, para dizer o mínimo, em muitas situações.

Tome-se como exemplo as “receitas auferidas por parques temáticos” (inciso XXI). Qual o critério aí eleito, o subjetivo ou o objetivo? Seria possível depreender que o legislador manteve o parque temático optante pelo lucro real no regime da não-cumulatividade, mas todas as suas receitas típicas no campo da tributação cumulativa? Suas receitas financeiras então seriam tributadas de maneira discrepante de todas as outras apenas por conta desse pertencimento etéreo da pessoa jurídica ao regime não-cumulativo?

Seria uma conclusão bastante insatisfatória, inclusive em termos de isonomia, mas que decorreria logicamente da diferenciação dicotômica entre as espécies objetiva e subjetiva segundo o núcleo lexical de cada inciso do artigo 10, conforme quer a interpretação fiscal.

Enfim, parece-nos que, quando o art. 1º, §1º do Decreto nº 8.426/15 referiu-se a pessoas jurídicas que tenham “parte de suas receitas” sujeitas ao regime não-cumulativos, não estava ali aludindo à própria receita financeira como parte possível dessas receitas.

Por isso, as pessoas jurídicas sujeitas ao lucro real, e que aufiram exclusivamente receitas decorrentes dos segmentos referidos nos artigos 10 da Lei nº 10.833/03, têm, a nosso ver, um argumento adicional para sustentar a não-incidência de Pis/Cofins sobre suas receitas financeiras: não apenas o argumento da ilegalidade/inconstitucionalidade da majoração de alíquota via decreto, mas também um argumento construído com uma mais adequada interpretação do próprio decreto.

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1 Na redação conferida pela Lei nº 12.973/14.

2 Também na redação conferida pela Lei nº 12.973/14.

FONTE: Jota – Paulo Roberto Andrade

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