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A INCONSTITUCIONALIDADE DA DUPLA SANÇÃO AO ILÍCITO TRIBUTÁRIO

20 de março de 2019

O princípio da proporcionalidade é norma jurídica que se afirmou nos sistemas jurídicos como decorrência inelutável do Estado Democrático de Direito.

O princípio da proporcionalidade é norma jurídica que se afirmou nos sistemas jurídicos como decorrência inelutável do Estado Democrático de Direito, organizado segundo a supremacia da Constituição e o primado dos direitos e garantias individuais, notadamente os relacionados à proteção da dignidade humana.

Em um sentido largo, o princípio da proporcionalidade representa um óbice jurídico de nível constitucional ao poder de intervenção do Estado sobre as liberdades individuais, especialmente quando fruto da prerrogativa estatal de impor sanções (jus puniendi), as quais para se revestirem de validade jurídica devem ser estritamente necessárias e adequadas ao fim a que se destinam. Não é outro o vetusto comando do artigo 8 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) segundo a qual “a lei deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias”, consagrando a necessária conexão entre delito e pena pregada por Cesare Becaria, para quem, aliás, a proporcionalidade que deve haver entre delito e pena constitui não uma mera virtude política a ser observada por um governo moderado, tal como a concebia Montesquieu, mas uma verdadeira exigência de interesse comum[1].

A ideia segundo a qual o poder estatal de sancionar deve obediência a limites intransponíveis fixados pelo Estado de Direito encontra-se consagrada no plano internacional através de diferentes convenções como autêntica conquista dos povos contra o exercício arbitrário do poder estatal e como afirmação da dignidade da pessoa humana. A propósito, a Carta Européia de Direitos Fundamentais estabelece que “a severidade das penas não pode ser desproporcional a ofensa criminal” (artigo 49.3).

O princípio da proporcionalidade consiste na fórmula jurídica construída pela praxis constitucional para veicular os limites jurídicos ao jus puniendi estatal. A sanção jurídica, para atender às exigências do princípio da proporcionalidade, deve ser adequada e necessária ao fim a que se propõe alcançar e atender de forma razoável ao conjunto de outros objetivos e comandos do sistema jurídico, ou seja, deve passar pelo escrutínio dos requisitos jurídicos da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito ou vedação ao excesso[2]. O Supremo Tribunal Federal reconhece através de inúmeros julgados a positividade do princípio da proporcionalidade em várias áreas do Direito brasileiro[3].

Também como fruto da imposição de limites ao poder sancionatório estatal, o princípio da proporcionalidade garante o direito humano fundamental segundo o qual ninguém pode ser sancionado duas vezes em razão do mesmo fato, consagrado em alguns ordenamentos através da vedação ao ne bis in idem.

Embora não expressamente declarada na Constituição Federal brasileira, a vedação ao ne bis in idem é norma jurídica positivada no sistema constitucional brasileiro como consequência inelutável do princípio da proporcionalidade, do Estado de Direito, além de ter ingressado no direito pátrio através dos pactos internacionais assinados pelo Brasil.

Com efeito, o direito fundamental à vedação à dupla sanção estatal encontra-se expresso no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto 592, de 6 de julho de 1992, o qual estabelece (artigo 14.7) que “ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absorvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.

O mesmo princípio encontra-se expresso na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada pelo Brasil através do Decreto 678, de 6 de novembro de 1991, segundo a qual “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos” (artigo 8º, 4).

As citadas regras convencionais têm imediata e plena aplicabilidade no direito brasileiro, por força da abertura constitucional aos direitos e garantias fundamentais consagrada pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Federal[4].

O sistema jurídico europeu também assegura idêntica garantia através do artigo 4 do Protocolo 7 da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, de 22 de outubro de 1984, segundo qual “ninguém pode ser julgado ou punido duas vezes”[5].

Em oposição e como limite ao poder sancionatório reconhecido ao Estado, a vedação ao ne bis in idem expressa a ideia de unidade do ilícito e da necessária proporcionalidade entre a sanção e a grau da ilicitude presente na conduta. É legítimo que atos contrários ao Direito sejam sancionados, mas tais sanções devem ser adequadas, necessárias e proporcionais, vale dizer, não podem ser excessivas, exageradas ou cumulativas.

A imposição de mais de uma sanção para uma mesma conduta ilícita constitui fragrante ofensa ao ne bis in idem, enquanto projeção jurídica do princípio da proporcionalidade, ambos garantias constitucionais de inegável positividade no direito brasileiro.

O direito tributário brasileiro conflita diretamente com o ne bis in idem e com o princípio da proporcionalidade quando estabelece a cumulatividade de penas para atos que, no entender da autoridade fiscal, constituem infrações à lei tributária punidas com multas pecuniárias (muitas vezes já agravadas) e cumulativamente também por sanções penais.

O ilícito tributário é um só e a pena a ele aplicável deve ser adequada, necessária e proporcional à proteção do bem jurídico protegido pelo ordenamento e que foi desatendido pela conduta sancionada. A cumulatividade de sanções é incompatível com a garantia jurídica do ne bis in idem e com o princípio da proporcionalidade.

A sanção tributária, a exemplo do que ocorre com a pena criminal, deve ser fixada em atenção à gravidade da lesão, mas em nenhuma hipótese pode ser cumulativa ou excessiva. Deve o Estado-Fisco avaliar a gravidade da lesão e escolher a sanção pertinente e estritamente necessária para repor a ordem jurídica.

Importante lembrar que o dever tributário é de natureza patrimonial, pecuniário. Tributo não se confunde com ato ilícito. Tributo constitui sempre uma prestação pecuniária compulsória em razão da prática de um ato lícito previsto em lei. Quem descumpre este dever pecuniário, comete uma infração fiscal, de natureza administrativa, e deve sofrer uma pena pecuniária necessária e adequada para compensar o prejuízo havido pelo credor (Estado) e para promover efeito dissuasório no plano obrigacional. Daí porque, em atendimento ao princípio da proporcionalidade, as penas para o descumprimento do dever fiscal de recolher a tempo o tributo devido devem ser multas proporcionais à infração cometida, onde elementos como valor, tempo de atraso e perfil do contribuinte podem ser considerados pelo legislador.

Por outro lado, quem pratica ato ilícito tipificado como crime tributário comete infração de natureza criminal, de elevada gravidade, a justificar a imposição de penas restritivas de liberdade, haja vista a natureza de ultima ratio de que se reveste a norma penal nos quadrantes do Estado de Direito. Aqui, o objetivo da sanção não é compensar ou reparar o prejuízo patrimonial sofrido pelo Estado-Fisco com o descumprimento do dever pecuniário, mas obter, através da punição, o efeito dissuasório máximo expresso pela gravidade da pena imposta.

Se o ato ilícito revela indícios de crime tributário, a sanção cabível não deve ser a imposição de multas pecuniárias agravadas, mas a aplicação das medidas sancionatórias pertinentes à persecução penal, tais como o sequestro de bens imóveis (artigo 125, Código de Processo Penal), a busca e apreensão de coisas obtidas pro meios criminosos (artigo 240, parágrafo 1º, CPP), além evidentemente da perda em favor da União do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso, localizados inclusive no exterior, como efeito da condenação (artigo 91, II, Código Penal).

A escolha da sanção aplicável — multa pecuniária ou pena criminal — deve sempre ser o resultado da análise concreta do ato ilícito praticado, da sua lesividade e gravidade em relação à ordem jurídica. A partir desta análise, compete à autoridade estatal escolher o caminho que irá tomar no processo de aplicação de sanções. Caso a conduta configure mera falta de recolhimento tributário, cabível a aplicação da pena pecuniária pertinente. Por outro lado, havendo indícios de crime tributário, deve a autoridade fiscal eximir-se de aplicar penalidades administrativas e remeter o caso à apreciação do Ministério Público, legítimo titular da ação penal, em razão da especialidade da norma penal.

A adoção do princípio da via única (una via principle) ou da especialidade (speciality principle) já vem ocorrendo em diversos países europeus como exigência da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Bélgica, Holanda, Finlândia, Itália e Espanha já possuem leis determinando que apenas um procedimento sancionatório deve ser aplicado em caso de ato ilícito tributário, devendo a autoridade estatal, quando tomar conhecimento do ato, escolher o caminho adequado, considerando a gravidade da lesão perpetrada pela conduta.

Registre-se que a Corte Europeia de Direitos Humanos[6] adota deste 1976 o chamado critério Engel para a definição do caráter “criminal” de uma sanção, segundo o qual a natureza de uma pena deve ser definida considerando a natureza da lesão (do ato praticado) e o grau de severidade da pena imposta. A partir desta premissa, para aquele Tribunal, mesmo penas administrativas, sob determinadas circunstâncias, podem ser consideradas “criminais”, para efeito de aplicação das regras relativas à proteção dos direitos humanos asseguradas pela norma convencional. Vale dizer, para a dimensão protetiva da norma convencional, a nota característica do caráter “criminal” da sanção reside no grau de severidade desta.

No leading case Grande Stevens e outros v. Itália, a Corte Europeia de Direitos Humanos, aplicando o princípio da vedação ao ne bis in idem, decidiu pela impossibilidade de imposição de uma pena administrativa para uma conduta antes já sancionada na esfera criminal.

Em tempos de Estados crescentemente intervencionistas e diante da manifesta incapacidade de os Parlamentos legislarem em favor dos direitos e garantias individuais, os tratados internacionais de Direitos Humanos, autênticos catálogos de conquistas da humanidade contra o poder estatal, representam o último bastião de defesa das liberdades individuais.

Neste sentido, a pressão por receita pública tem levado os Estados a uma exacerbação na imposição de sanções tributárias destinadas a, através da ameaça de coação, conseguir o cumprimento pelo contribuinte das obrigações que lhe são impostas pela lei tributária. Este movimento de overpunishment exige a aplicação de princípios constitucionais consagrados historicamente e constantes de convenções internacionais destinadas a proteção dos direitos humanos, como é o caso do princípio da proporcionalidade e da vedação ao ne bis in idem.

A dupla imposição sancionatória ao ilícito tributário — multas pecuniárias agravadas e sanções de natureza criminal — de forma cumulativa afigura-se inconstitucional porquanto não atende às exigências da vedação ao ne bis in idem, enquanto projeção do princípio da proporcionalidade, garantias positivadas no Direito brasileiro pela Constituição Federal, pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário. Para atender aos comandos normativos impostos por aquelas garantias constitucionais é imperativa a escolha de apenas uma via sancionatória (una via principle), considerada a gravidade da lesão jurídica representada pelo ato ilícito tributário.

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[1] Cesare Beccaria, Dei delitti e dele pene, 3a. ed., Milano, Fetrinelli, 1993, VI.

[2] Sobre a evolução e o conteúdo jurídico do princípio da proporcionalidade, cf. o nosso O princípio da proporcionalidade e o direito tributário, São Paulo, Dialética, 2000.

[3] Sobre a proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cf. Curso de Direito Constitucional, de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, 14ª ed, São Paulo, Saraiva, 2019, p. 229-232.

[4] Art. 5º.

  • 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
  • 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[5] Article 4 – Right not to be tried or punished twice

No one shall be liable to be tried or punished again in criminal proceedings under the jurisdiction of the same State for an offence for which he has already been finally acquitted or convicted in accordance with the law and penal procedure of that State.

[6] A Corte Europeia de Direitos Humanos tem a função de aplicar os princípios fundamentais garantidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 4 de novembro de 1950, cujo artigo 4º assegura o poder jurisdicional da corte sobre os direitos humanos. A corte é composta de 47 juízes, cada um vindo de um dos Estados-membros que firmaram a convenção. Os juízes da corte são eleitos para um mandato não renovável de nove anos.

FONTE: Conjur – Por Helenilson Cunha Pontes

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