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TRATAMENTO DE DADOS SEM CONSENTIMENTO

8 de março de 2019

Grande questão a ser debatida no Brasil é se o tratamento de dados por legítimo interesse comporta oposição do titular dos dados.

A contagem regressiva para início da vigência da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) segue inexorável e imperturbável: se considerarmos a Medida Provisória 869/2018, que ainda precisa ser votada, no dia 16 de agosto de 2020 o tratamento de dados pessoais terá que ser realizado nos termos de seu marco regulatório, tornando-se ilícito o tratamento realizado fora dos termos da LGPD.

Isso quer dizer, na prática, que o tratamento de dados pessoais (armazenamento, utilização, compartilhamento, distribuição ou qualquer outra ação com tais dados) existente nas empresas só poderá se dar mediante a satisfação de uma hipótese legal, que vem sendo chamada de base legal ou jurídica. Segundo o artigo 7º da LGPD, são dez as hipóteses legais, entre as quais se destaca o consentimento e o legítimo interesse.

Não fosse pela figura do legítimo interesse da empresa, que dispensa a coleta de consentimento por parte do titular, as hipóteses legais engessariam a atividade empresarial. Pensemos, por exemplo, no tratamento de dados realizados mediante consentimento, muito utilizado para justificar a criação de mailing para disparo de mala direta e propaganda.

Grande questão a ser debatida no Brasil é se o tratamento de dados por legítimo interesse comporta oposição do titular dos dados.

Neste caso, o consentimento do titular, ou seja, sua manifestação de vontade no sentido de receber e-mails da empresa, é forma segura para tratamento dos dados pessoais do mesmo, porém, se o mesmo se arrepende e revoga o consentimento, a empresa fica impedida de prosseguir com a manutenção dos dados da pessoa. Sem consentimento a empresa teria que encaixar o tratamento de dados em outra base jurídica, e isso nem sempre é possível.

Sendo assim, a criação do legítimo interesse foi uma grande abertura que o legislador deixou na LGPD, a fim de impedir o referido engessamento. Mas o que é, afinal de contas, o legítimo interesse de uma empresa no que toca o tratamento de dados pessoais? Para auxiliar os jurisdicionados, o legislador descreveu na LGPD dois exemplos de legítimo interesse (art. 10): ações de apoio e promoção das atividades da empresa ou proteção dos direitos do titular dos dados. O rol de exemplos não é exaustivo, possibilitando a inclusão de outras hipóteses além das já citadas. Entretanto, ainda com os exemplos dados, a questão da subjetividade não é superada, o que torna essencial a análise caso a caso.

A União Europeia (UE), por já dispor de lei de proteção de dados muito antes do Brasil, avançou bastante na melhor interpretação do legítimo interesse, e tal interpretação foi incorporada pelo legislador e será, certamente, adotada pela doutrina e jurisprudência. Para melhor entender se o interesse é legítimo ou não, a análise passa pelo que chamamos de teste de ponderação, no qual o interesse da empresa é confrontado com outros elementos, a fim de se estabelecer o equilíbrio entre seus direitos e os direitos do titular dos dados pessoais.

Inicialmente, o interesse da empresa não pode conflitar com as expectativas comuns do titular. Uma pessoa, por exemplo, que tem interesse em baixar um e-book disponível em um site, em regra, não tem a expectativa de que seus dados serão compartilhados com provedores de internet para oferecimento de pacotes de serviços.

Outro exemplo neste sentido é o titular dos dados que aceita o cartão de fidelidade de uma rede de supermercados para obtenção de descontos. Não sabia ele que a rede de supermercados compartilhava seus dados e hábitos de consumo com empresas de plano de saúde, que poderiam auferir, se quisessem, se o titular ingere muitos alimentos processados, salgados ou doces.

Nos dois exemplos acima, verifica-se que, se o tratamento de dados que a empresa realizou, ainda que não conte com o consentimento expresso do titular, não infringiu as legítimas expectativas desde último, o tratamento poderá ser encaixado no legítimo interesse.

O teste de ponderação considera outras variáveis, entre as quais o tempo de tratamento de dados. O tratamento deve ser imediato, contemplando começo, meio e fim do mesmo, dando, assim, previsibilidade e maior segurança jurídica ao titular dos dados pessoais.

Outra grande questão a ser debatida no Brasil é se o tratamento de dados por legítimo interesse comporta oposição do titular dos dados ou não. A dúvida se originou no artigo 7º, que permite a aplicação do legítimo interesse “exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais”. Novamente a LGPD mergulhou em termos subjetivos, causando sérias dificuldades e a necessidade de análises individuais. Na UE o entendimento é o de que o titular dos dados poderá se opor se houver violação à sua legítima expectativa, ou seja, não se trata de todos os casos.

Pelo que expomos acima, o legítimo interesse poderá ser essencial em duas situações: a primeira, para que as empresas justifiquem o tratamento de dados durante o período de transição de eficácia da LGPD. Se a base de dados antiga não se encaixar em nenhuma base jurídica, pensar em “situações concretas” para utilizar os dados pessoais pode ser a salvação antes que o banco irregular se perca; a segunda, para que as empresas consigam inovar e desenvolver novos produtos ou serviços, pois, na economia digital, torna-se essencial o uso de dados pessoais.

Ricardo Oliveira é sócio do Cots Advogados, com extensão universitária em Direito da Tecnologia da Informação pela FGV-EPGE, MBA em Gestão Estratégicas de Negócios pela Faculdade de Informática e Administração Paulista (Fiap) e especialização em Direito pela Universidade Mackenzie, professor universitário de Direito Aplicado aos Negócios Digitais, em cursos de MBA, coautor do livro Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais Comentada (Editora Revista dos Tribunais, 2018) e Marco Civil Regulatório da Internet (Editora Atlas, 2014).

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

FONTE: Valor Econômico – Por Ricardo Oliveira

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