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REPATRIAÇÃO: ACORDO OU CILADA?

19 de fevereiro de 2019

Não se pode impor um ônus surpresa: o de provar a origem dos bens, contra o texto da lei, da regulamentação e das posições da Receita.

O regime especial de regularização cambial e tributária (RERCT), instituído pela Lei nº 13.254/2016, inseriu-se no contexto da premência da troca automática de informações financeiras entre os países da OCDE e mais de uma centena de jurisdições. O objetivo geral foi possibilitar que pessoas físicas e jurídicas que mantinham recursos lícitos não declarados no exterior assim o fizessem, obtendo, por consequência, extinção da punibilidade dos crimes implicados na não declaração (como evasão de divisas). O custo para tanto seria o pagamento de Imposto de Renda sobre os valores declarados, acrescido de multa.

Na época da adesão ao regime, havia muita insegurança jurídica sobre o conteúdo da declaração que deveria ser feita pelo contribuinte como condição para a aplicação dos benefícios previstos na lei. Uma das questões que ocupou o debate se relacionava com o dever de provar a origem lícita dos recursos: seria esse ônus do contribuinte ou, ao contrário, caberia à administração tributária desconstituir a declaração de licitude, mediante prova da origem ilícita?

Como forma de esclarecer esse e outros pontos nebulosos, durante o prazo para a adesão, a Receita Federal publicou o Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016, com perguntas e respostas sobre o regime e o conteúdo da declaração. O item 40 tratou exatamente do ônus da prova, afirmando, literalmente: “O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB”.

Não se pode impor um ônus surpresa: o de provar a origem dos bens, contra o texto da lei, da regulamentação e das posições da Receita.

Outra, aliás, não poderia ser a postura da Receita: contribuintes que deixaram de declarar valores lícitos mantidos no exterior raramente têm prova da origem dos recursos. Além disso, muitas declarações referiram-se a remessas bastante antigas e sequer as instituições financeiras detinham os dados e documentos relativos a elas. Essa orientação, mesmo sem caráter normativo, expressou a compreensão da administração acerca do programa e selou os termos dos atos futuros da Receita quanto à aplicação e interpretação das adesões então realizadas.

A despeito disso, no final de 2018, a Receita Federal modificou o Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016, para inserir três notas complementares no item 40 e, com isso, alterar sua interpretação anterior. A nota 1 afirma: “a desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat, assim como ocorre nas demais declarações prestadas à RFB”. Há, sem dúvida, clara mudança de orientação. O teor da redação original do item 40 não fazia qualquer ressalva quanto ao momento da atribuição do ônus da prova; apenas enunciava que o ônus de desconstituir a declaração do contribuinte era do Fisco.

Com a mudança, o cenário é outro. O contribuinte que porventura não tenha prova concreta da origem lícita mas, ainda assim aderiu ao programa fiando-se na orientação da Receita Federal, encontra-se, agora, vulnerável a pedidos de documentos, esclarecimentos e outras notificações que possivelmente não poderão ser cumpridas.

A quebra de segurança jurídica é evidente. Mais do que isso, é ilegal. O Estado propôs um negócio jurídico extraprocessual com os contribuintes: revelem seus bens hauridos de maneira lícita, paguem tributo e multa, e as demais sanções administrativo-tributárias-penais serão perdoadas. Se o contribuísse mentisse, então perdia os efeitos do acordo.

A base de programas de repatriação está na relação de cooperação entre Fisco e contribuinte: não se trata de uma armadilha, para pegar contribuintes despreparados. Ao contrário. A OCDE sugeriu a adoção de regimes desse tipo antes que a troca automática de informações entrasse em vigor exatamente para conferir a possibilidade de regularização de ativos lícitos. Não se pode agora impor um ônus surpresa: o de provar a origem dos bens, contra o texto da lei, da regulamentação e das posições oficiais da Receita.

Isso não torna, é claro, a declaração indevassável, nem seus efeitos, irreversíveis. Apenas o ônus de questionar a verdade quanto à origem dos bens está deslocado para o Estado Sancionador. A lei, nesse ponto, aliás, é expressa: a declaração não poderá ser utilizada como único indício ou elemento para efeitos de expediente investigatório ou procedimento criminal”. Logo, por interpretação singela, é preciso haver outros indícios.

O Código de Processo Penal define indício como aquela “circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias. Como se vê, trata-se de circunstância provada e não mera ilação. Tal circunstância, por indução, leva à existência de outra circunstância. Portanto, o Estado Sancionador tem o dever de apresentar um elemento provado do qual se deduza a mentira quanto à origem declarada pelo contribuinte.

Em suma, a alteração promovida pela Receita é abusiva, além de afrontar a moralidade administrativa. O ônus de desconstituir a declaração de licitude dos recursos é da administração tributária. A transferência para o contribuinte somente irá gerar contencioso e reforço de que, no Brasil, Fisco e contribuinte são necessariamente opositores.

O resultado é aumento da litigiosidade e da percepção de que os tributos são mera expropriação estatal e não meios legítimos de financiamento de necessidades públicas. Para piorar, será percebido como uma presepada com alto potencial criminalizador daqueles que, confiando no mínimo ético estatal, confessaram atos passíveis de serem enquadrados como delitivos.

FONTE: Valor Econômico – Por Davi Tangerino e Tathiane dos Santos Piscitelli

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